Um parecer contra a corrente

1. Um parecer da Procuradoria-Geral da República veio esta semana confirmar o que há anos se comentava em vários círculos da cidade e se afirmou clara e inequívocamente neste jornal: a detenção para identificação de arrumadores de automóveis, que foi prática corrente da Polícia de Segurança Pública do Porto a pedido da câmara municipal, "não tem efectivo suporte legal, nem qualquer legitimação à luz das normas constitucionais aplicáveis em matéria de direitos, liberdades e garantias, e em particular do direito à liberdade e segurança, regulado pelo artigo 27ª da Constituição". A conclusão do parecer que, parcialmente, se acaba de transcrever era há muito uma evidência para quem tivesse o mínimo de conhecimento das regras básicas de um Estado de Direito democrático. Mas, apesar dessas evidências, o comando distrital da PSP agiu durante meses em flagrante violação dessas regras, entrando alegremente numa campanha de "erradicação" de arrumadores de automóveis que nos deve envergonhar, não apenas por ter existido, mas por ter existido impunemente durante tanto tempo na segunda cidade do país.Desde que se soube que o combate à exclusão social e à actividade dos arrumadores se tornara numa das prioridades políticas de Rui Rio e de Paulo Morais, o PÚBLICO manteve-se fiel à sua orientação editorial e ao compromisso de defesa de princípios e de valores que se inscrevem no código genérico da democracia e da igualdade dos cidadãos perante a lei, sejam eles arrumadores marginalizados ou não. Se, por um lado, nos parecia importante acabar com a actividade dos arrumadores, pela sua condição de excluídos, pelos naturais incómodos que estes causam a muitos cidadãos e pela sensação de insegurança que o seu negócio promove, nas nossas colunas de opinião sempre nos pronunciámos contra o modo como a actual maioria encarava o problema. Recorde-se que, numa primeira fase, a receita de Rui Rio para "erradicar", "escorraçar" ou "limpar" as ruas dos arrumadores chegou a admitir o recenseamento compulsivo, o uso obrigatório de um cartão de identificação e a recolha de informações relacionadas com o seu estado de saúde. O bom senso acabou por imperar e, em vez de um cenário de confuguração própria de regimes totalitários, assistimos à criação do projecto "Porto Feliz", mais humanizado, para além de ser legal e tecnicamente sustentado por reputados especialistas da cidade.Mas se a atitude da Câmara nos mereceu duras críticas, também a PSP do então comandante Chumbinho não esteve isenta de actuações pouco condizentes com o que se deve exigir a uma força de segurança de um país europeu. Se do lado da Polícia Municipal houve uma clara rejeição aos apelos da Câmara para a prática de actos susceptíveis de conduzirem a uma "politização da polícia" e ao "desvirtuamento do conceito de democracia", de acordo com a Associação Sindical da Polícia, a PSP embarcou alegremente na perseguição dos arrumadores como se de criminosos compulsivos se tratasse. O parecer da PGR constitui, por isso, um excelente pretexto para que os comandos metropolitanos possam reflectir sobre o seu papel e sobre os limites da sua actividade.2. Em todo este processo, que mancha a actuação da PSP e compromete a visão que a actual maioria municipal manifestou sobre o combate a um processo de exclusão social, sobra ainda uma questão em aberto: para além do esforço de reintegração em curso no âmbito do "Porto Feliz", que outros meios têm as autoridades para combater o que, no parecer da procuradoria, se considera ser a "contenção de actividades marginais socialmente danosas"? A resposta é dada pelo mesmo parecer: é necessário que o poder político "repense a eventual necessidade de dar resposta, fora de um contexto criminal ou contra-ordenacional, a problemas objectivos de segurança e de ordem pública a que o Estado não pode ser indiferente". A questão dos arrumadores equadra-se no conjunto destes problemas objectivos. Resolvê-los no quadro da lei, merece a nossa aprovação; querer acabar com a sua presença nas ruas da cidade à custa de uma actuação que viola "direitos, liberdades e garantias" constitucionalmente consagrados é uma prática intolerável e merece a mais profunda rejeição a todos os que acreditam nas virtudes de um Estado de Direito.

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