Tríptico da Natividade pode ter vindo de Avignon

Quase dois anos e 1400 pregos de prata depois, o Tríptico da Natividade da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães, está finalmente restaurado e prepara-se para ocupar o seu lugar de destaque no Museu Alberto Sampaio.Os trabalhos de limpeza que devolveram o brilho original a esta magnífica peça de ourivesaria de finais do século XIV, também conhecida como Tríptico Portugal, revelaram importantes dados sobre intervenções anteriores e deram origem a estudos que põem em causa algumas das interpretações históricas em vigor."É uma peça de ourivesaria muito complexa, talvez uma das mais difíceis que já tivemos em mãos", diz Belmira Maduro, técnica do Instituto Português de Conservação e Restauro (IPCR) que dividiu com Isabel Tissot todo o processo de revalorização do tríptico.A obra é composta por um painel central e dois volantes e o seu programa iconográfico inclui, além do tema da natividade, os episódios da Anunciação, da Epifania (ver caixa) ou da apresentação no templo. "É uma peça única em Portugal e no contexto europeu", explica Anísio Franco, que forma com João Soalheiro a dupla de especialistas que se entregou com entusiasmo ao estudo do tríptico a que prefere chamar retábulo de prata. O carácter de excepção não se deve apenas ao facto de ter sobrevivido durante mais de 600 anos, resistindo a diversas pressões para que fosse entregue como contributo para sucessivos esforços de guerra (muitas obras de ourivesaria eram convertidas em moeda para pagar aos soldados). "O retábulo de prata da colegiada faz a síntese da ourivesaria do gótico internacional que reproduz, de uma forma quase obsessiva, a própria arquitectura da época. O vocabulário que usa é idêntico ao europeu", o que leva os especialistas a defenderem que os escudos com as armas de D. João, Mestre de Avis - a que fica a dever-se a designação Tríptico Portugal - foram "apostos ao retábulo original". "O tipo de linguagem empregue representa para a escultura daquele período o mesmo que o latim para a Europa da cristandade", garante Soalheiro. Os estudos, ainda a decorrer, não foram muito conclusivos ao nível dos materiais. O retábulo em prata "é feito com ligas [materiais compostos, não puros], o que torna impossível determinar a sua proveniência com base na simples análise física da peça", diz Anísio Franco.A importância das fontes escritasUma análise detalhada das fontes escritas permitiu aos dois investigadores optarem por uma das duas teses em vigor relativamente à origem da peça e lançarem a possibilidade de ter sido produzida em Avignon, França.A primeira das teses, criada provavelmente no século XVII, defende que a peça é uma encomenda do Mestre de Avis que, recorrendo aos despojos da Batalha de Aljubarrota (14 de Agosto de 1385), terá mandado fazer um retábulo com o equivalente ao seu peso em prata para agradecer a Nossa Senhora da Oliveira, de que era muito devoto, a vitória das suas tropas lideradas pelo célebre Nun'Álvares Pereira frente às de João de Castela. A segunda diz que o retábulo faz parte dos bens que os castelhanos deixaram para trás durante a fuga e que deverá ter pertencido ao rei invasor. Para esta tese contribuem documentos que apontam para o facto de João de Castela viajar com a sua capela e a sua baixela. "A crónica de D. João I, de Fernão Lopes, uma das principais fontes, diz que João de Castela vinha para ficar e que não contava com a resistência portuguesa. Pelo que é natural que viajasse com peças importantes, sobretudo como esta, feita para transportar [os dois volantes fecham-se sobre o painel central, formando uma caixa]."Outras fontes provenientes do Santuário de Guadalupe, o maior de Castela na segunda metade do século XIV, dão conta da existência de um retábulo com estas características - "obra muito elaborada" - que durante séculos se julgou ter sido derretido para o esforço de guerra. "Só que depois da derrota e de toda a confusão gerada na fuga das suas tropas que terão sido massacradas pela população, o rei castelhano, muito devoto a Guadalupe [o santuário é o equivalente castelhano ao da Colegiada de Guimarães], pode não ter ordenado que fosse convertido em moeda porque não precisou de pagar aos soldados."Sendo de Guadalupe, o retábulo de Nossa Senhora da Oliveira pode ter sido feito em Avignon, já que era de lá que vinha "a maioria das pratas encomendadas por Espanha nesse período". Para Anísio Franco importa lembrar que, com o sisma do Ocidente que dividiu o igreja católica entre os fiéis ao Papa de Roma e os seguidores do de Avignon, esta cidade francesa se transformou no centro da cristandade. "Lá estariam os melhores artífices à espera de encomendas da corte papal e dos vários monarcas europeus."A qualidade de execução da peça aponta para a excelência da oficina em que foi produzida. "Trata-se de uma peça claramente paradigmática, de uma obra capaz de servir de modelo."O seu valor foi reconhecido desde sempre pelos cónegos da colegiada, que investiram avultadas quantias em intervenções de restauro ao longo dos séculos. "Era um símbolo da Nossa Senhora da Oliveira. D. Afonso V e D. Sebastião quiseram levá-lo para pagar soldos, mas eles nunca deixaram."Graças ao escudos de D. João I, o retábulo chegou mesmo a ser usado como instrumento de reafirmação nacionalista durante a Restauração e o Estado Novo. Restauro complexoO trabalho das restauradoras do IPCR exigiu a desmontagem completa do retábulo - composto por mais de 270 peças (esculturas, fundos, molduras e arquitectura) - e um profundo trabalho de limpeza. "Havia problemas com a conservação do metal e do suporte de madeira em que está montado", explica Isabel Tissot. "Além de que já tinha sofrido muitas intervenções anteriores. Substituímos pináculos e retirámos mais de 400 pregos de ferro, cobre e latão." No seu lugar foram aplicados 1400 pregos de prata feitos à mão. Tissot e Maduro fizeram ainda estudos para determinar as condições de conservação ideais de que a peça irá dispor na sua nova vitrina no Museu Alberto Sampaio, em Guimarães. "É difícil chegar a uma solução equilibrada quando se tratam de bens mistos. A humidade e temperatura ideais para o metal são muito diferentes dos valores exigidos pela madeira", explica Belmira Maduro. "Decidimos não aplicar qualquer tipo de protecção contra a oxidação porque altera o brilho da prata e os materiais usados para evitar o envelhecimento têm uma durabilidade menor."Até ao fim do ano o IPCR vai publicar o estudo que está em fase de conclusão. Em Setembro haverá ainda uma apresentação formal dos trabalho de restauro.

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