Carlos Kleiber (1930-2004)

Enigmático, intransigente, inimigo da rotina, excêntrico, Carlos Kleiber foi talvez o último grande mito da direcção de orquestra do nosso tempo. Carlos Kleiber morreu a 13 de Julho na Eslovénia, aos 74 anos, mas só ontem um comunicado da Ópera de Viena tornou a notícia pública.Sobre ele se escreveu que tinha a "inspiração dionisíaca" de Furtwängler e o "sentido arquitectural" de Toscanini. A sua arte combinava de forma genial dimensões tão aparentemente opostas como o rigor e a sensualidade, a minúcia de detalhes que lhe valeu o epíteto de "relojoeiro de partituras" e um carisma electrizante de um "demiurgo da batuta". Venerado pelos músicos e adorado pelos melómanos, teve uma vida fora do comum e uma carreira fora das normas, rodeada de mistério. Esquivo a contratos permanentes, às gravações e à imprensa, Kleiber permanecia longos períodos sem aparecer em público e faleceu sem conceder uma única entrevista. Não é pois de estranhar que a notícia da sua morte tenha chegado à comunicação social quase uma semana depois de ter ocorrido - nem as causas são conhecidas.Depois de 1968, ano em que deixou a direcção da Ópera de Estugarda, Kleiber nunca mais ocupou nenhum posto oficial, preferindo apresentar-se como convidado na direcção de óperas e concertos sinfónicos. A partir de 1995 as suas aparições tornaram-se cada vez mais raras e imprevisíveis. Perfeccionista, apenas concordava trabalhar quando queria e onde se sentia bem e o cancelamento de concertos era frequente. Dava-se ao luxo de escolher o repertório e os músicos e de estabelecer o seu próprio ritmo de trabalho. Mas conta-se também que, tendo constatado a certa altura o défice da conta bancária, se viu obrigado a recorrer pontualmente aos organizadores de concertos.Kleiber dirigia pouco e o seu repertório não era muito extenso, mas isso não lhe impediu a genialidade. Unia a paixão à clareza analítica e ao gosto por dar vida aos detalhes de uma partitura. O seu sentido do ritmo e do movimento eram únicos, assim como o domínio da tensão dramática. Senhor de uma enorme paleta expressiva (que oscilava entre o mais refinado lirismo e o êxtase nervoso), a sua aproximação instintiva às obras era controlada por uma clarividente capacidade intelectual. Nascido em 1930, em Berlim, Carlos Kleiber era filho de outro grande mito da direcção de orquestra, o austríaco Erich Kleiber, que dirigiu a estreia do "Wozzeck", de Alban Berg, em 1925. A sombra da herança artística do pai parece nunca o ter abandonado. Consta que Erich Kleiber chegou várias vezes a repreender as "performances" do filho e é sintomático que Carlos Kleiber tenha fugido sem deixar rasto quando estava tudo a postos para começar a gravação do "Wozzeck" para a EMI.Erich Kleiber exilou-se na Argentina em 1935 na sequência da sua oposição ao nazismo pelo que foi em Buenos Aires que Carlos Kleiber (que tinha nacionalidade argentina) iniciou os estudos musicais. De regresso à Alemanha, nos anos 50, Erich Kleiber voltaria a pedir demissão das funções oficiais, desta vez como protesto pela intromissão do poder político comunista no domínio artístico. Carlos Kleiber terá herdado o carácter forte do pai para além do seu talento para a direcção. No regresso à Europa estudou química em Zurique, mas o apelo da música seria mais forte. Em 1954 estreia-se como maestro em Postdam e nos anos seguintes trabalha como co-repetidor e maestro assistente em Dusseldorf, Estugarda, Zurique e Munique. Nesta última cidade faz apresentações bastante regulares com a Ópera da Baviera e no início dos anos 70 estreia-se à frente da Ópera e da Filarmónica de Viena. Embora com muito menos frequência dirige também no Scala de Milão, no Covent Garden de Londres e no Festival de Bayreuth, onde tem a seu cargo o "Tristão e Isolda" de 1974 e 1976. Graças à relutância em produzir discos, cada uma das suas gravações converte-se num acontecimento. Ainda há pouco tempo fez furor a recuperação da Sinfonia Pastoral, de Beethoven, pela etiqueta Orfeo, num registo ao vivo que documenta a única vez que o maestro dirigiu a obra. (ver artigo de Augusto M. Seabra no Mil Folhas de 29-5-2004). A maior parte dos seus (poucos) discos pode encontrar-se, no entanto, na Deutsche Grammophon e na EMI. Entre os pontos altos da sua carreira encontram-se as interpretações de óperas como "O Cavaleiro da Rosa" e "Electra", de R. Strauss; "Otelo", de Verdi; "Carmen", de Bizet; "Der Freischütz", de Weber; "La Bohéme", de Puccini, ou da opereta "O Morcego", de J. Strauss. No repertório sinfónico destacam-se as sinfonias de Mozart, Beethoven e Brahms.

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