Hotéis com história

O Facho Guest House foi inaugurado em 1910 pelo conde Almeida Araújo. A sua relação e grande amizade com Francisco de Almeida Grandella, o empresário filantropo que em finais do século passado abria em pleno Chiado, Lisboa, uns armazéns à francesa com o seu nome, marcaram para sempre a Foz do Arelho. O próprio Grandella era proprietário de um palácio situado um pouco mais para o interior, debruçado sobre a lagoa de Óbidos, ao estilo neomanuelino muito ao gosto da época. Se a casa de Grandella era sinónimo de guarida segura para republicanos que conspiravam contra a monarquia, o cenário da Foz do Arelho era, por seu lado, o palco de glamourosas festas, banquetes e caçadas que ficaram para a história, reportadas inclusive na imprensa local. Ainda hoje se fala dos mestres de falcoaria árabes, vestidos a rigor com as suas jelabas brancas, mandados vir por Grandella para caçar nas margens da lagoa, conferindo à Foz do Arelho um ambiente exótico quanto baste. A verdade é que a influência destes ilustres foi marcante para a pequena vila. Não será por acaso que a rua sem saída que termina no Facho tem o nome de Francisco Almeida Grandella. E, entre outras histórias que se contam na terra, fala-se dos jantares dos Makavenkos, um clube de amigos com estatutos aprovados e tudo cuja divisa era "Honra, caridade e alegria", que partilhavam o gosto pela arte e por saraus gastronómicos, e tinham ainda tempo e dinheiro para investir em actos de solidariedade.Um jantar dos Makavenkos terá sido a ocasião que aproximou Grandella de Stella Stuart, uma inglesa que viria a tornar-se a sua amante e que o terá sensibilizado para o problema do analfabetismo. Mas as ideias sociais já faziam parte das prioridades do empresário, precursor de algumas iniciativas como a sopa dos pobres que oferecia junto aos armazéns em Lisboa, as creches para os filhos dos funcionários e até excursões educativas para ocupar as férias das famílias dos seus funcionários. Em 1912, Grandella edificava a escola primária Bernardino Machado e seria pela mão de Almeida Araújo que se construiriam algumas das estradas da Foz do Arelho. O Facho passaria para a família Grandella depois da morte prematura de Almeida Araújo e, já com os novos proprietários, o hotel seria ampliado até ao terceiro andar e inaugurada a luz eléctrica em todo o edifício. O prenúncio da guerra marcava mais uma etapa da vida do Facho pela venda do hotel a Charles Harbord.As minas de urânio e os engenheiros inglesesNo período da Segunda Guerra Mundial, o Hotel do Facho parecia uma convenção de engenharia de minas. Os ingleses ligados à exploração mineira há muito que tinham interesses na região mineira da Urgeiriça. Charles Harbord, oficial do exército inglês, comprava em 1930 a concessão das minas de urânio da Urgeiriça, sendo muito do minério extraído exportado directamente para a Inglaterra. A guerra e as possibilidades do uso do urânio para fins militares tornaram a Urgeiriça num ponto estratégico de maior importância para os britânicos. Nessa altura, já Harbord tinha construído o English Hotel da Urgeiriça, uma mansão construída inicialmente para albergar a família e os engenheiros que trabalhavam na extracção do minério, mas que depois foi alvo de ampliações e transformada em hotel. O negócio prosperava e em finais da década Harbord tinha formado sociedade com Mrs. Phillys Graham, cliente assídua da casa. Em Agosto de 1942, no auge da guerra, nasce a sociedade Hotéis Internacionais Ld. O império alargava-se então a outras unidades hoteleiras: o Hotel do Facho na Foz do Arelho, a Estalagem da Lezíria em Vila Franca de Xira e o Grande Hotel das Caldas da Felgueira. O Facho servia então de casa de veraneio aos engenheiros ingleses instalados na beira que procuravam no litoral um clima mais ameno e o cenário perfeito para se esquecerem da guerra. Era também ao Facho que vinham parar muitos refugiados. Era uma espécie de último reduto, um porto seguro pela neutralidade de Portugal e muitas vezes um ponto de passagem para os Estados Unidos, mesmo ali em frente. O Facho é também o porto de abrigo de Jorge do Coito, o actual proprietário do hotel, onde ancorou nos anos 80 depois de uma adolescência psicadélica passada em Montreal. Jorge foi para o Canadá com os pais nas primeiras vagas de emigrantes portugueses para a América. Cruzou o Atlântico no primeiro avião de passageiros que fez a travessia. A vontade de assentar num lugar mais quente do que o Canadá fez este estudante de Design voltar a Portugal com a ideia de montar um negócio e viver perto do mar. Ao início, o projecto era partilhado com o irmão, mas a busca tornou-se infrutífera e acabariam por voltar ao Canadá sem terem encontrado nenhum local que servisse esse sonho. O Hotel Facho, encontrado por membros da sua família que viviam na zona, seria comprado pelos dois irmãos à distância de um oceano, com um crédito especial que era concedido a emigrantes para comprarem bens imóveis na terra natal. E se para o actual proprietário o Facho foi um amor à primeira vista que se tornou num projecto de vida, para o seu irmão foi a certeza de que a vida pacata junto à lagoa e ao mar não tinha suficiente "sex, drugs and rock'n'roll" e por isso voltou para o Canadá.Em 1980, o Facho era quase uma ruína insalubre, fruto de uma ocupação de seis anos por inúmeras famílias regressadas das ex-colónias. O programa de realojamento fazia parte de uma medida que o Governo estabelecera com algumas unidades hoteleiras no sentido de albergar os retornados do Ultramar nos anos que se seguiram à revolução de 74. Falava-se de papéis falsos, de nomes de pessoas já falecidas que constavam das listas das pessoas albergadas, porque o pagamento era nominal. A verdade é que a ocupação do Facho era muito para além do que a capacidade do hotel tinha. Mas o que Jorge recorda foi o estado em que encontrou o Facho. "Já não havia água canalizada, nem janelas. Criavam porcos nas casas de banho e cozinhavam no quarto. Tirámos tanto lixo que fizemos uma fogueira que ardeu durante um mês." O que não ardeu foi o livro de registos do Facho, encontrado entre pilhas de papel velho e salvo "in extremis" pelo faro apurado de um respigador nato. Para a história ficam os engenheiros ingleses, as actrizes que já ninguém lembra e os casais de jovens arquitectos atraídos talvez pela peculiaridade do edifício que assenta na rocha. Apesar disso parece que tudo o que se encontra no Facho sempre ali esteve e carrega as memórias de todos estes fantasmas.Mas há pormenores que fazem essa ligação directa com o passado, sejam os azulejos Bordalo Pinheiro que ficaram a marcar o lugar vazio de uma salamandra que existia junto às escadas ou a tela do barco à vela que hoje está na sala de jantar. O autor é Thomaz de Mello, um velho amigo de Grandella. Se o pintou ali, de uma das varandas de onde se espreita as Berlengas, não fica contado nesta história. Mas a sensação é a de que pertence àquele lugar.O Facho é um refúgio de escritores, um ponto de encontro anual de arquitectos e um destino obrigatório para quem gosta de sítios que carregam o ar do tempo, fora das convenções, e especial o suficiente para não se perceber logo à primeira o que nos atrai naquele sítio. Acima de tudo, note-se que é uma casa de hóspedes e não um hotel, como refere Jorge. A diferença faz-se sentir na afabilidade da recepção e na sensação de estarmos em casa.

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