Dia-D

Jorge Almeida Fernandes

O 6 de Junho de 1944 é uma data mitológica, esculpida em filmes. É o dia em que "os americanos salvaram a Europa". Para lá do mito, mudou o curso da Segunda Guerra Mundial, forçando a rendição da Alemanha nazi em 11 meses. Foi a maior operação combinada de meios aéreos, navais e terrestres da história militar. Foi também uma acção de alto risco, ganha devido à aliança da esmagadora máquina de guerra americana com o sistema de informações britânico.

Os aliados tinham desembarcado na Itália e Roma rende-se a 4 de Junho. Mas é uma batalha periférica. Os russos suportam, a leste, todo o peso da guerra. Os alemães têm aí 2,1 milhões de soldados, contra um milhão nas frentes ocidentais. É essencial a abertura de uma frente a oeste, através do desembarque em França. Uma primeira decisão é tomada por Churchill e Roosevelt, no Quebeque, em Agosto de 43: fixam a data de Maio de 44. A decisão final é acordada com Estaline, em Novembro, na conferência de Teerão (Dezembro 43).

Em Dezembro, o general americano Dwight Eisenhower assume o comando supremo e o britânico Montgomery é nomeado chefe das forças em terra. O nome da operação é eloquente: "Overlord" (suserano, senhor dos senhores).

Era uma acção de alto risco, que além de poderio e coragem exigia sorte. Os alemães esperavam a invasão. Depois do malogro de um desembarque anglo-americano em Dieppe (Normandia), em Agosto de 42, Hitler ordena a construção do "Muro do Atlântico", da Noruega à fronteira espanhola, e que fortifica em especial toda a costa francesa. As praias são semeadas de obstáculos, armadilhas, milhões de minas. Dunas e falésias são cobertas por uma densa rede de fortificações de betão com alta capacidade de fogo. Um milhão de toneladas de aço, 11 milhões de metros cúbicos de betão e o trabalho de 450 mil pessoas, que ergueu cerca de 15 mil obras de fortificação. A guarnição alemã eleva-se a meio milhão de homens.

Para furar esta muralha, é necessária uma extraordinária desproporção de forças. Do outro lado da Mancha, os aliados concentram quase três milhões de homens, milhares de blindados, dispondo ainda de absoluta superioridade naval e do total domínio dos céus: 10.500 aviões contra 300 dos alemães (em França).

Não basta desembarcar os homens. Eles têm de aniquilar as posições inimigas para progredir rapidamente no terreno. Churchill muito hesitou, por memória de um antigo fiasco de sua responsabilidade, o desembarque em Gallipoli (Turquia), em 1915: o desembarque correu bem mas a expedição ficou bloqueada, acabando por perder 46 mil homens.

O maior risco é o massacre no próprio momento da chegada às praias. Os alemães estavam à espera. Eram comandados pelo mais velho e pelo mais novo dos marechais alemães, Von Rundstedt e o lendário Erwin Rommel. Estavam divididos. O primeiro defendia um fulminante contra-ataque após o desembarque. O segundo, a aniquilação dos invasores nas praias. Escreveu Rommel: "As primeiras 24 horas da invasão serão decisivas. (...) Tanto para os aliados como para a Alemanha, este será o dia mais longo da história da guerra."

Para o desembarque, era necessária a conjugação de três condições naturais: uma noite de luar para permitir a largada de pára-quedistas na retaguarda; maré baixa ao alvorecer, para permitir ver e destruir os obstáculos; uma subida rápida da maré, para facilitar a largada das barcaças de desembarque. O dia 5 de Junho era ideal. Mas, na véspera, rebenta uma tempestade. A operação deveria ser adiada para 19 ou talvez para Julho. No entanto, às duas da manhã de 5, o coronel Jim Stagg, chefe da meteorologia, recebe dados do Norte e da Gronelândia que indicam uma melhoria para o dia seguinte. Eisenhower decide desembarcar a 6. Os alemães não têm esta informação. Prevêem alguns dias de mau tempo. Com a invasão adiada, Rommel parte para a Alemanha, a fim de pedir reforços a Hitler e ir ao aniversário da mulher. Outros generais foram para Paris. A primeira reacção alemã será desordenada.

Os aliados tinham ganho o primeiro efeito de surpresa, a data. Faltava o segundo, o local. Os alemães esperavam um desembarque mais a norte, no Pas-de-Calais, onde é mais curta a distância entre Inglaterra e França. Outra razão jogava em favor do Norte: os invasores precisavam de ocupar rapidamente um grande porto, para abastecer as tropas e passar os blindados. Por isso, as melhores forças alemãs não estarão na Normandia.

Apostando neste cálculo, os aliados escolheram a Normandia, que tinha boas praias. E, nas semanas anteriores, procederam a uma gigantesca mistificação: montaram um simulacro de exército em frente ao Pas-de-Calais, com milhares de aviões e tanques de guerra de madeira ou borracha insuflável e outros engodos (operação "Fortitude"). Até nomearam um comandante fictício, o "terrível" general Patton. No próprio dia da invasão, um simulacro de armada foi posto no mar com o mesmo fim.

Há outro factor decisivo. Os alemães tinham perdido todas as redes de informação na Grã-Bretanha e as que havia eram compostas por agentes duplos manobradas pelo MI-5, para intoxicar Berlim. Para mais, os britânicos conseguiram decifrar os códigos alemães, "Enigma", e liam as suas mensagens.

O logro funcionará plenamente. Hitlter e Rommel suspeitaram da possibilidade dum desembarque na Normandia. Mas, depois do Dia-D, Hitler fixou-se na ideia de que o ataque na Normandia era uma manobra de diversão para uma invasão no Pas-de-Calais, onde os alemães conservarão demasiado tempo o grosso das forças.

Às 6h30 da manhã do Dia-D, os primeiros americanos desembarcam na praia "Utah". Às 7h25, hora determinada pela maré, os primeiros britânicos chegam às praias "Gold" e "Sword", seguidos pelos canadianos que ocupam "Juno". Apenas na praia "Omaha" o desembarque corre mal: perdem-se quase todos os carros anfíbios, a artilharia desaparece na água revolta e os alemães conseguem manter os americanos, muitos deles desarmados, debaixo de um dilúvio de fogo num estreito perímetro - é a "Bloody Omaha", onde foram mortos ou feridos 2200 americanos. Só a intervenção de bombardeiros pesados e da artilharia naval e um assalto de "rangers" a um dos "bunkers" evitam a catástrofe e a debandada.

O retrato alucinante de Spielberg nos primeiros 20 minutos de "O Resgate do Soldado Ryan" é confirmado pelos sobreviventes. Foi lá que Robert Capa, fotógrafo da "Life", retratou o pavor no rosto dos combatentes, nas 11 fotos que se salvaram das 144 que tirou (foram estragadas no laboratório).

Os soldados foram transportados por um impressionante dispositivo: 4205 barcos de transporte, escoltados por 722 navios de guerra e protegidos por milhares de aviões. O desembarque foi precedido pelo lançamento de pára-quedistas na retaguarda, com sucesso limitado, e preparado por maciços e eficazes bombardeamentos aéreos e navais. Para o desembarque, beneficiaram do apoio de carros anfíbios e de um eficaz abastecimento, graças a pontes-cais ("mulberries") transportadas por mar e que funcionaram como portos flutuantes - o que dispensou a tomada prévia de um porto.

Na noite de 6 de Junho, o êxito é total: 170 mil homens estavam em terra e começavam a avançar. O número de baixas era inferior ao previsto: 4900. Mas havia muitos milhares de feridos. A junção das forças aliadas, a 12, marca a conclusão de "Overlord".

O pior vem a seguir. Apesar da esmagadora superioridade material, os aliados tiveram de conquistar o terreno palmo a palmo. A cidade de Caen, que deveria ser tomada logo a seguir ao desembarque, apenas será ocupada a 9 de Julho. Muitos soldados combatiam 17 horas por dia. Um grande número das baixas deve-se ao colapso psicológico. As dificuldades logísticas foram resolvidas com a progressiva conquista de portos. Só a partir de 25 de Julho, com a operação "Cobra", o avanço aliado se torna inexorável. Nos meses seguintes ao Dia-D, morrerão 53.714 soldados aliados. Importa referir os "danos colaterais": 14 mil civis franceses mortos pelos bombardeamentos das cidades, metade deles entre 6 e 15 de Junho.

Os aliados contaram com o apoio da resistência francesa, em sabotagens e informação. Mas ele não foi decisivo. Sê-lo-á depois, no desembarque da Provença. Mas constituiu um importante factor político que determinou o futuro da França: em lugar de esperarem passivamente a libertação, os franceses participaram no combate e aceleraram, capitaneados por De Gaulle, a reinstituição da República.

O efeito imediato do Dia-D foi acelerar o fim da guerra. Dois terços do potencial alemão estavam mobilizados na Frente Leste. A invasão da França galvanizou a contra-ofensiva russa e abriu o caminho da Alemanha nazi, a leste e oeste, fazendo-a desmoronar em Maio seguinte. Hitler suicida-se a 30 de Abril de 1945.

E se o Dia-D tivesse fracassado? "A margem que separou o êxito do fracasso foi muito estreita", escreveu o teórico e historiador militar britânico Liddel Hart. No entanto, ele pensa que um fracasso não alteraria o desfecho da guerra. A Alemanha estava em extrema dificuldade no Leste e, sobretudo, a superioridade aérea anglo-americana era avassaladora. Os bombardeamentos estratégicos tornam-se muito mais precisos a partir de 1944 e a indústria alemã está a caminho do aniquilamento. O exército cairia por falta de meios.

Cenário inverso traça Martin Gilbert, historiador militar e biógrafo de Churchill. "O regime nazi teria retomado o ascendente. Teria desenvolvido novas armas devastadoras, as bombas voadoras V1, prontas a ser lançadas por alturas do Dia-D. Submarinos de longo curso, capazes de atingir a Costa Leste americana sem reabastecimento, estavam no estádio final de desenvolvimento. Aliviada a Frente Oeste, um terço das forças combatentes alemãs ficariam livres para integrar a ofensiva contra a União Soviética. Se o exército americano tivesse sido forçado a retirar vencido da Normandia, os Estados Unidos teriam voltado todas as suas energias para a guerra no Pacífico, deixando quando muito uma força de contenção de Hitler na Europa."

Mais relevante que especular sobre "ses" - e um outro "se" é o programa atómico americano, já em avançada fase - é realçar a opção estratégica do Presidente americano, Franklin Roosevelt.

Ele considerava inevitável entrar na guerra europeia, mas defrontava-se com uma forte corrente isolacionista. Em meados dos anos 30, colocou a indústria a trabalhar em pleno para criar uma imparável máquina de guerra, assente na produção de massa, o que lhe permitiu abastecer e salvar a Grã-Bretanha a partir de 1940 e fornecer a URSS após a invasão alemã de 1942.

É o ataque japonês a Pearl Harbor (7 de Dezembro de 41) que lhe permite dar a volta à opinião pública americana, subitamente decidida a vingar-se. No entanto, contra a opinião da Marinha e à revelia de muitos americanos, que temem um ataque japonês na Califórnia, Roosevelt faz da Alemanha o inimigo prioritário: "Germany first". Explica o historiador Robert Paxton: "Nas escolas, lugares públicos, por toda a parte, os rostos de Hitler, Mussolini e Tojo, o ditador japonês, acabaram por formar um só e mesmo inimigo."

Roosevelt não o faz por motivos sentimentais. Sabe que tem de derrotar o Japão, mas se Berlim dominar o continente euro-asiático a Alemanha nazi tornar-se-á senhora do mundo. O que, independentemente do raciocínio geo-estratégico, significaria a barbárie. Enfim, a escolha de Roosevelt e o Dia-D tiveram um segundo efeito que marcará as décadas seguintes: fizeram da América "o líder do mundo ocidental".

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