Grande Prémio APE para Mafalda Ivo Cruz

O anúncio foi feito ontem à tarde: "Vermelho", de Mafalda Ivo Cruz, 45 anos, é a obra vencedora do Grande Prémio de Romance e Novela 2003 da Associação Portuguesa de Escritores (APE), a maior e mais conceituada distinção para a literatura em Portugal.Não foi uma escolha unânime - um dos membros do júri, Maria Isabel Barreno, votou em "Os Papéis de K", de Manuel António Pina (Assírio & Alvim). Mas Margarida Braga Neves, Eduardo Prado Coelho, José Carlos Seabra Pereira, Júlio Moreira e José Correia Tavares constituíram a maioria que fez premiar a quarta obra publicada da escritora, a sua mais referêncial, trabalhada e densa narrativa, porventura a mais difícil, mas também uma das mais fulgurantes - o momento da consumação de um universo e de uma voz profundamente originais e intensos. Antes houve "O Rapaz de Boticelli" (2002, Dom Quixote), "A Casa do Diabo" (2000, Dom Quixote) e "Requiem Português" (1995, Presença). Passo a passo, foram-nos puxando para um escuro cada vez mais negro e profundo, para um caos e uma pungência cada vez mais vertiginosos."Requiem Português", alicersado na mesma história real que deu origem a "A Balada da Praia dos Cães", o livro de José Cardoso Pires e o filme homónimo de José Fonseca e Costa, será, deste breve percurso, a narrativa mais convencional. Depois dele, "Com uma Faca na Mão" ficou por publicar. "A Casa do Diabo", história de uma mulher em perda com um homem como personagem principal, estabeleceria o momento visível de passagem para a incandescência poética das obras mais recentes. "O Rapaz de Boticelli" (Prémio Pen Club em 2003) e o agora Prémio APE "Vermelho" estarão numa mesma categoria: a de livros que se escrevem como quem pinta, como quem esculpe ou arranca de um instrumento as notas que precisa de ouvir. Literatura que tem lá dentro pintura, imagens vivas, que saltam das páginas e se nos atiram aos olhos. Narrativa, por mais que dissolvida, que lança sons (e silêncios) a ferir ouvidos dentro, e que por vezes dança, em selvajaria libertária.Um fio condutor entre todas estas obras: uma ideia de família ao centro. Solução poética para um equívocoEm "Vermelho", temos Tito, que vive num bairro de lata lisboeta de onde se vislumbra o mar. Temos Nina, a mulher, grávida, que pinta a parede da barraca de azul-turquesa. E Lena, outra mulher, o vértice em falta numa arquitectura estruturada sobre trios. Na origem desta está Afonso de Amadeus, um Napoleão branco em Cabo Verde, onde decide sobre a vida e a morte - Deus. E a única mulher que amou, uma negra, Isaura - a Natureza. Na ponta do triângulo, fantasmas: os das mulheres legítimas dele, as Rosas, loiras de olhos azuis, que vão morrendo, e os dos filhos que ela, Isaura, foi tendo de outros homens e que ele, Afonso, foi mandando enforcar. Ecos ruidosos numa genealogia de degeneração em que se segue uma criança fechada num quarto em que a única visita é Dária. Ele, um negro albino, tem 12 anos quando ela, uma criada esguia e bela, engravida. Daqui vem Tito. Escrito entre Maio e Dezembro de 2002, com uma bolsa de um ano do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas (IPLB), "Vermelho" respira o peso do tempo que houve para a sua elaboração, muito mais que o habitual. É, diz a escritora, "uma solução poética para um equivoco": depois de ter visto o documentário "Outros Bairros", de Inês Gonçalves, Kiluanje Liberdade e Vasco Pimental, sobre a comunidade cabo-verdiana em Portugal, Mafalda Ivo Cruz entregou ao IPLB um projecto centrado no mesmo tema, mas rapidamente chegou à conclusão de que "esse era um mundo sobre o qual nada sabia". "Não fazia sentido. Tive que encontrar uma solução que me levasse para onde eu no fundo queria, que era trabalhar o discurso estilístico e qualquer coisa que teria a ver com o romantismo." Sobretudo o primeiro romantismo, "marginal, fora das normas", de uma "selvajaria" sem par.Começou sob o signo de "Viagem de Inverno", de Schubert. Acabou no excesso de Brahms. A embalar, depois a sacudir. Ritmos e cores. O preto, claro, mas também o verde, e uma ideia de gotas de sangue sobre neve branca - o "Vermelho". Da música para a escritaMafalda Ivo Cruz chegou tarde à literatura. Numa família de músicos - o pai, a mãe, todos os irmãos -, começou aos cinco anos a ter aulas de piano e seria na música o percurso dela esperado. Mas um dia, em 1992 ou 93, em Paris, onde vivia na altura, muito deliberadamente fechou a tampa sobre o teclado e comprou cinco cadernos quadriculados. Pôs-se a escrever. Fê-lo a toda a hora, à mão, durante oito ou nove meses. Tinha-se imposto uma medida - a dos cinco cadernos. No fim, algo tinha que ter nascido. Foi "Um Requiem Português". Desde então, em relação à sua obra, costuma referir-se Duras. Em "Vermelho" são citados directamente Beckett e Proust, pressente-se a sombra de Dostoievski. Mas, como dizia Eduardo Prado Coelho num texto publicado há quase quatro anos, fecharmo-nos ao abrigo dessas paredes será perder o que há de único em Mafalda Ivo Cruz, "muito provavelmente a mais importante revelação da literatura portuguesa contemporânea".

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