Casa onde não há razão, todos ralham e não há pão

1. Diz um conhecido adágio popular: casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão. Penso que a conexão lógica interna deste sábio ditado se mantém válida se alterarmos assim os termos do juízo: casa onde não há razão, todos ralham e não há pão. Isto é: se se perde a racionalidade, o discernimento, o bom senso e a virtude, segue-se que a consequência é a conflitualidade negativa e depois o empobrecimento.Isto pode aplicar-se à situação portuguesa. A nossa situação é preocupante e inclino-me a pensar que a primeira causa é a falta de valores partilhados e respeitados, de capital social e cultural, de discernimento e de coesão social. Tal degenera numa conflitualidade não virtuosa que reduz a governabilidade. Segue-se logicamente a crise de desenvolvimento. Chegando aqui, pode entrar-se num círculo vicioso: faltando o desenvolvimento, isto é, o pão, todos ralham e ninguém tem razão. É uma nova projecção da teoria grega da circularidade dos regimes políticos. Nesta ideia está implícito não dar à instância política o poder mágico que se lhe costuma dar (e que só seria verosímil em ditadura ou em totalitarismo); mas dar-lhe, isso sim, um poder interdependente, democrático.2. Como muitos outros, penso que a nossa questão básica é de educação, de mentalidade, de valores e virtudes, de civismo; em grande parte determinada pelo nosso sistema social e cultural. Vê-se em quase tudo: desde o comportamento na estrada até à desordem urbanística, das habilidades para rodear a lei às demagogias de várias espécies, da fuga ao fisco à economia clandestina, dos desleixos da burocracia à corrupção, do futebol às televisões, da política partidária ao sindicalismo primário, etc. etc. Um triste indicador da auto-estima do nosso sistema social é aceitarmos frequentemente que nos portamos melhor no estrangeiro do que em Portugal. E como há dias recordou Sousa Tavares, rimo-nos de nós próprios com o dito de um historiador romano, que teria escrito haver, para as bandas da Lusitânia, uma tribo que nem se sabia governar nem se deixava governar. Não sei se disse; mas isso só em parte é verdade, quanto a não nos sabermos governar bem. Do período histórico de que mais nos podemos orgulhar fomos governados pelos filhos educados de uma mãe inglesa casada com um rei português. Por outro lado, a história dos períodos de ditadura, ou de regime de autoridade, provam que nós nos deixamos governar. E até apreciamos o bom governo, porque o povo também diz: "haja quem nos governe!". Do que não gostamos é de ser governados por estrangeiros, e disso demos provas ao longo de mais de oito séculos. Sobretudo o povo, mais do que as elites, diga-se.3. Estávamos fartinhos de saber que, com a baixa produtividade que temos, iríamos sofrer com a competição e com o alargamento. Mas não avançámos coisa que se visse, uma vez que não recuperámos comparativamente, nem na reforma do mercado de trabalho, nem na educação escolar nem na formação técnica e profissional. Cá temos agora a deslocalização das empresas estrangeiras e portuguesas, com o respectivo desemprego de trabalhadores que nem podem emigrar para a Europa porque não têm habilitações - alguns bons exemplos em contrário não apagam o panorama geral. Entretanto, os sindicatos e outros centros de poder político e ideológico continuam a preferir sempre e só um bode expiatório, o Governo, que, depois de endividar o País até além dos limites, tem agora as mãos atadas pelo sistema, se é que seria capaz de as mover.Há dias, mexeu-se na Constituição, ao que parece entre outras coisas para "igualar" um casal de homens, ou um casal de mulheres, a um casal homem-mulher. Mas recusou-se clarificar que um jovem que vai para uma escola privada é igual, para efeitos de financiamento público do ensino, ao seu irmão gémeo que escolhe uma escola pública. E que para efeitos de serviços gratuitos, a Constituição deve adoptar o princípio das discriminações positivas, porque os ricos não são iguais aos pobres. Este exemplo mostra bem como nos governamos.4. Entretanto, como somos dos países mais livres na comunicação social (soma de liberdade legal e de amorfismo social-cultural), a nossa televisão deve ser das mais libertárias e deletérias. Salvo honrados órgãos de comunicação social e distintos editorialistas e críticos de televisão (que são a nossa esperança, mas não são bem-queridos da comunicação social em geral e são evidentemente "desprezados" pela restante opinião), o quarto poder vive sobretudo dos despojos da carnificina política e das misérias sociais e morais. E as televisões, essas, prosperam com a exploração do escândalo, das histórias de intriga e sensualidade, seja em noticiários seja em telenovelas. Com honrosas excepções, os debates e "talk-shows" que organizam são sobre o que é chocante para a cultura tradicional, bem-pensante para a "nova cultura", e quase sempre tem a ver com o sexo. Há dias, quando Carlos Cruz saiu da cadeia, as televisões deram-nos um espectáculo deprimentemente longo. Bastaria uma notícia de dois ou três minutos para tudo ter sido dito. O resto foi exploração da basbaquice. As mesmas imagens foram repetidas inúmeras vezes, enquanto os repórteres falavam excitadamente dizendo coisa nenhuma. Pobre País! Mau é que, a pouco e pouco, a RTP, serviço público de televisão, vai copiando as televisões privadas, alinhando com a grande máxima da moderna comunicação de massas: dar ao público aquilo que agrada ao público. E vá lá a gente fazer reparos: dizem logo que é censura e ataque à liberdade de imprensa. Há dias, num painel televisivo que discutiu sobre crítica de televisão, só faltou dizer-se que não podia haver crítica de televisão. Ataque à liberdade de imprensa é o que alegam; eu permito-me ler ataque à liberdade do negócio. E negócio de milhões, tão atractivo que, como recentemente notou o Presidente da República, se vai concentrando perigosamente. Contudo, trata-se de um dos grandes problemas culturais do nosso tempo, o do aumento exponencial de poder da televisão. Vale a pena, creio eu, recordar a este respeito a prevenção que nos deixou um dos maiores nomes da cultura humanista democrática ocidental, Karl Popper. Fica para um próximo artigo.

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