O anátema do voto em branco

Deixando de lado a questão de saber se José Saramago apelou ou não o voto em branco - o que ele repetidamente tem negado -, bem como a dúvida sobre a exacta interpretação da metáfora do maciço voto em branco, aliás "espontâneo", no seu "Ensaio sobre a Lucidez", a verdade é que a generalizada condenação do voto em branco que se lhe seguiu na opinião publicada assenta no equívoco de que ele é, por definição, uma expressão de hostilidade à democracia. Mas essa tese não resiste a um exame crítico.Na democracia representativa, que é essencialmente uma democracia eleitoral, as eleições significam, antes de mais, escolha entre as diversas candidaturas. No entanto, nas modernas democracias de partidos, o direito de candidatura está em geral limitado, por via de lei ou por via de facto, aos partidos políticos ou grupos políticos mais ou menos consistentes. Sob o ponto de vista da generalidade dos cidadãos, a democracia eleitoral é portanto a liberdade de optar, ou não, pelos candidatos que lhe são propostos.Ora este pressuposto natural das eleições pode falhar por vários formas, nomeadamente a abstenção, o voto nulo e o voto branco. Podem ser as mais diversas as motivações de cada uma destas atitudes. Assim, a abstenção eleitoral tanto pode significar o simples impedimento ocasional (ausência ou doença), como o desinteresse político ("a minha política é o trabalho"), como uma atitude de inutilidade (julgar antecipadamente decidido o resultado eleitoral), como uma absoluta rejeição dos mecanismos democráticos (um monárquico que se recusa a votar na eleição do Presidente da República). Da abstenção não é possível retirar nenhum sentido geral nem unívoco. No caso do voto em branco, que ao invés implica a participação no acto eleitoral, as motivações podem estar na rejeição das candidaturas ou das opções em presença, na dificuldade ou impossibilidade de escolher entre elas, ou também na rejeição do próprio mecanismo eleitoral ou referendário. No caso da anulação voluntária do voto, as motivações podem ser semelhantes às do voto em branco, possivelmente com maior ênfase na rejeição dos candidatos e/ou do próprios eleições ou referendos.Seja como for, a verdade é que historicamente as ideias hostis à democracia eleitoral preferiram em geral a abstenção activa ao voto em branco como modo de manifestação dessa inimizade. Só a abstenção responde ao propósito de recusa liminar dos mecanismos democráticos e de não contribuição para a legitimação da democracia. Foi essa a atitude das forças absolutistas nos primórdios do governo representativo e, depois, em geral, dos movimentos antiliberais e antidemocráticos radicais; os fascistas odiavam as eleições, como tais. Mas foi essa também a posição dos movimentos anarquistas e, em geral, dos movimentos radicais de esquerda na contestação da "democracia burguesa" e das eleições como uma "farsa". Ainda hoje se pode ler num "website" representativo dessas ideias: "dada a ausência real de democracia, a abstenção é um acto cívico e responsável que retira toda a legitimidade ao sistema" (http://www.antidemocrature.org/).Pelo contrário, o voto em branco, implicando a participação no jogo democrático - e por isso tem uma expressão muito mais reduzida do que a abstenção -, está normalmente isento de qualquer propósito de deslegitimação e de combate à democracia eleitoral. No mesmo "site" acima referido, em que a democracia é qualificada como "democratura", ou seja, ditadura pseudodemocrática, pode ler-se: "a abstenção afigura-se preferível ao voto em branco; a abstenção indica claramente uma recusa de participar, enquanto o voto em branco pode deixar entender somente que nenhum dos candidatos nos convém, mas que aceitamos a 'democratura' e o sistema eleitoral que contribui para a manter." Além disso, o voto em branco é uma maneira perfeitamente democrática de exprimir descontentamento político, designadamente a rejeição das opções eleitorais em presença e a crítica dos "défices democráticos" existentes. Deste modo, ele é susceptível de uma função democraticamente virtuosa, a saber, um alerta contra o "mal-estar democrático" ou "crise da representação democrática", ideias que constituem um lugar-comum em muitas análises das democracias contemporâneas e que se traduzem na crescente taxa de abstenção, no desinteresse pelos partidos políticos, na hostilidade larvar contra os políticos, no apoio a forças populistas, etc. Ora essas análises não relevam de nenhuma posição antidemocrática, mas sim, pelo contrário, de uma preocupação em relação à qualidade da democracia e à sua redução a um ritual de selecção periódica dos dirigentes políticos, por mais importante que esta seja. Votar em branco ainda significa utilizar instrumentos democráticos (justamente o voto) para mostrar uma posição política, sendo por isso preferível à abstenção ou ao voto em movimentos extremistas, anti-sistema, opções infelizmente mais tentadoras do que aquele, e mais perigosas. Em vez de uma posição antidemocrática, o voto em branco pode, portanto, ser lido antes como um alerta contra o conformismo democrático em relação à crescente alienação cívica, uma espécie de "sobressalto democrático" em prol de uma "regeneração" da cidadania democrática e da democracia representativa.São várias as razões por que os partidos políticos e os comentadores são mais complacentes com a abstenção do que com o voto em branco. Primeiro, porque a abstenção é muito mais equívoca no seu significado, misturando as mais variadas motivações e diluindo portanto as eventuais dimensões antidemocráticas, enquanto o voto em branco tem um sentido tendencialmente mais unívoco, de rejeição do quadro partidário ou das opções políticas existentes. Segundo, porque, em resultado dessa diferente motivação, uma considerável votação em branco implica uma crítica muito mais severa ao "statu quo" político do que a abstenção, por mais maciça que esta seja, visto que esta pode ser sempre descartada como consequência mais do "desinteresse" e da "alienação cívica" em geral do que como crítica dos partidos e das práticas políticas prevalecentes. O voto em branco supõe uma atitude deliberada e uma crítica de mais forte intensidade. Se em vez de 20 por cento de abstenção houvesse 20 por cento de votos em branco, era muito menos aceitável a ausência de resposta política a esse manifesto alerta cívico.Ora, muito mais do que o voto em branco, a abstenção é que constitui um verdadeiro perigo para a democracia eleitoral, tanto pelo seu efeito de deslegitimação, uma vez ultrapassados determinados patamares, como pela atitude de resignação, demissionismo e conformismo que ela revela. A abstenção eleitoral é o grau zero da cidadania, não o voto em branco.1. A apresentação das contas do primeiro ano de gestão dos hospitais empresarializados, vulgarmente conhecidos por "hospitais SA", foi justamente saudada como exemplo democrático de prestação pública de contas e os seus resultados louvados como um apreciável acréscimo da eficiência (mesmo se a sua interpretação não é pacífica). Só importa assegurar igualmente que o objectivo da eficiência não sacrifica os princípios essenciais do serviço público de saúde, nomeadamente a universalidade e a igualdade no acesso.2. Só pode merecer aplauso a decisão do primeiro-ministro de pôr fim ao contencioso criado há uma dúzia de anos com o escritor José Saramago, pela censura oficial então imposta por um obscuro e obscurantista secretário de Estado da Cultura de um governo do PSD ao seu livro "O Evangelho Segundo Jesus Cristo". Ainda que esse gesto se possa inscrever num propósito de atenuar a imagem excessivamente direitista que a marca ideológica do PP tem dado à coligação, é sempre bom ver um líder político demarcar-se de actos de discriminação de escritores ou artistas por motivos políticos ou ideológicos.

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