Torne-se perito

Comunidade muçulmana em Portugal está cada vez mais diversificada

Imaginem uma família muçulmana que tem um filho pequeno que é convidado para ir a uma festa de aniversário de um colega não-muçulmano. Os pais podem pensar se devem deixar o filho ir porque não sabem se vai ser servida carne de porco, que é proibida pela religião islâmica, mas ao mesmo tempo não o querem afastar dos amigos. Este é o exemplo das dúvidas que surgem aos muçulmanos que vieram para a Europa ou que já aqui nasceram. É, entre outros factores, da resposta a estas perguntas que estão a nascer conceitos islâmico-europeus, explica Nina Clara Tiesler, investigadora alemã a viver em Portugal e autora de tese sobre a Nova Presença Islâmica na Europa hoje, com um enfoque especial no caso português. O fenómeno da construção deste islão europeu pode ser observado também na comunidade em Portugal, onde já há representantes da segunda geração nas universidades ou a iniciar a vida activa. Mas Portugal tem uma história particular entre as comunidades muçulmanas europeias. Nina Tiesler, que está ligada ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, distingue os países que receberam os primeiros imigrantes muçulmanos na sequência de processos de descolonização, como Portugal, e os que, como a Alemanha, por exemplo, os receberam como mão-de-obra. "Antes de virem as 'massas', já estava em Portugal uma elite pequena, chegada no final dos anos 50 e início dos anos 60, de entre cinco e 15 pessoas, bem integrada e com capacidade para organizar uma estrutura religiosa", diz. Ao contrário da Alemanha, que recebeu sobretudo turcos, que não falavam alemão, eram rurais e em muitos casos analfabetos, os primeiros muçulmanos a chegar a Portugal eram estudantes universitários, vindos de Moçambique, da comunidade de origem indiana. "Esse é desde o início, e ainda hoje, o grupo mais influente", segundo a investigadora. "Isso percebe-se facilmente através da própria história da Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL), cujo primeiro presidente foi Suleiman Valy Mamede, que era também o director da Anop, a primeira agência noticiosa no pós-25 de Abril". Ao contrário do que aconteceu noutros países europeus, em Portugal os líderes da comunidade - nomeadamente Valy Mamede, já falecido, e o seu sucessor hoje na presidência da CIL, Abdool Magid Karim Vakil - são figuras públicas e influentes. "Em 1974, coincidindo com a descolonização, houve a crise petrolífera", prossegue Nina Tiesler. "Portugal estava muito dependente do petróleo e não tinha contactos com os países árabes. O PSD achava que Valy Mamede podia ter um papel aí, para motivar os países árabes a abrirem embaixadas e manterem boas relações com o país". A investigadora identifica três fases na nova (em contraponto à histórica, dos mouros) presença muçulmana em Portugal. A primeira acontece ainda durante o Estado Novo, com esses primeiros estudantes vindos de Moçambique. É ainda o mesmo Valy Mamede que na altura tenta aplicar o conceito de luso-tropicalismo, fala de uma super-comunidade islâmica lusófona, viaja para Moçambique, e para a Guiné. Mas o conceito teórico não se transforma numa realidade. Curiosamente é na fase seguinte que vamos encontrar em Portugal algo próximo dessa ideia de comunidade islâmica lusófona. Com a chegada de números importantes de muçulmanos vindos de Moçambique (sunitas, mas também ismaelitas, um ramo xiita do islão), e algum tempo depois, vindos da Guiné-Bissau, o perfil da comunidade é lusófono. São na sua esmagadora maioria muçulmanos que falam português, apesar das grandes diferenças culturais que têm entre si. Há também, já nessa altura, alguns muçulmanos de países árabes, do Magreb, Senegal, Índia e Paquistão, mas são poucos.Na terceira - e actual - fase histórica, "os novos padrões da imigração mudam a composição da comunidade, que é hoje muito mas diversificada". É a partir do início dos anos 90 que começam a chegar a Portugal outros grupos, como por exemplo o dos imigrantes do Bangladesh. "Agora temos muçulmanos que falam bengali", refere Nina Tiesler. "E como a maioria deles trabalha na zona do Martim Moniz surgiu aí uma nova pequena mesquita". Mas, sublinha, este tipo de fenómenos "não tem a ver com divergências sobre conceitos abstractos do islão, ou perspectivas da religião". Tem a ver, sobretudo, com "urgências, necessidades e desejos do quotidiano". "Ir cinco vezes por dia, ou mesmo uma só, à mesquita da Praça de Espanha [a mesquita central de Lisboa] é muito complicado. É mais fácil ter um local de culto perto da loja. São as condições sociais que determinam estes desenvolvimentos", na opinião de Nina Tiesler. Isto significa que cada vez há mais diversidade e experiências diferentes. Como é que isso transforma a prática do islão num país como Portugal? "Para um imigrante [de primeira geração] a religião pode funcionar como uma âncora". Por um lado, ele reproduz alguns elementos da cultura de onde veio embora faça uma escolha. "Às vezes reproduzem rituais que não eram muito importantes no país de origem, mas como há cá dez ou 15 pessoas que os conhecem, repetem-nos. Outros se calhar eram muito importantes na sua aldeia mas aqui não há condições para os fazer". Por outro lado, as comunidades tendem a encontrar pontos comuns. Nina Clara recorda uma afegã, imigrante de primeira geração na Alemanha, que dizia que no Afeganistão os funerais eram feitos à maneira local dos seus avós, mas ali em Berlim faziam-nos como estava escrito no Alcorão. Confrontados com esta diversidade, e também com as novas questões que surgem numa sociedade moderna e não muçulmana, os imãs "têm que reinterpretar a sabedoria islâmica, os textos originais, à luz deste novo contexto". A isto junta-se outro fenómeno: as novas gerações têm acesso a muito mais coisas do que os pais ou os avós tiveram. "Hoje toda a gente pode ler o Alcorão na língua do país onde vive e não só em árabe, entrar em fóruns na Internet, não é preciso estar sempre a consultar o imã". E depois há os olhares e a curiosidade dos "outros" (que são portugueses como eles, mas não são muçulmanos). "Uma muçulmana que vai à escola, que decide usar o hijab, tem que estar preparada para discutir temas como a questão do islão em geral, o papel das mulheres o secularismo", diz a investigadora. É por estes jovens que passa a construção do islão europeu (que é heterogéneo), seja em Londres, em Berlim, ou em Lisboa. "Eles estão a proclamar uma percepção universal do Islão, que não tem nada a ver com o que se passa numa aldeia da Guiné-Bissau. Estão à procura de um islão que saiba responder às perguntas deles". O olhar dos "outros" pode tornar-se mais incómodo quando atentados como os de Madrid ou os dos EUA são reivindicados por grupos que dizem agir em nome do Islão. Nina considera fundamental não confundir comunidades muçulmanas com grupos radicais - "que não têm qualquer apoio entre aquelas". Os muçulmanos europeus têm tanto medo desses radicais como quaisquer outros cidadãos europeus. Por isso, é essencial evitar preconceitos. E a investigadora acha que Portugal foi, depois do 11 de Setembro, um bom exemplo a esse nível.

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