Torne-se perito

Abu Nidal: O homem que tem a chave do muro

Todos os dias de manhã, Abu Nidal abre a porta de sua casa, desce os oito degraus das velhas escadas de metal, dá as três passadas necessárias para percorrer o jardim, prepara a chave que tem entre um molho preso à cintura enquanto atravessa a estrada e abre um cadeado maior do que a sua mão. Empurra o portão, e atravessa a barreira de segurança entre a Cisjordânia e Israel. Abu Nidal é o único palestiniano que tem a chave do muro. Ri-se do insólito. "Quando se tem muitas coisas más que não podem ser derrotadas, não resta mais nada senão rir."Abu Nidal, sem qualquer relação com o "mestre terrorista" palestiniano que semeou a morte nos anos 70 e 80 e morreu recentemente no Iraque, é conhecido como "o homem que está dentro do muro". Porque atrás da sua casa há um colonato, que é protegido por uma dupla barreira. Seguindo o sentido dos ponteiros do relógio, a próxima lateral da casa terá também uma cerca de arame, espécie de prolongamento da que protege o colonato. À frente, está o muro propriamente dito, parte de cimento, parte vedação, separado por um portão que é por onde passa Abu Nidal. Finalmente, na outra lateral da casa, passa uma estrada, que já não serve de nada porque está cortada pelo muro. Abu Nidal está literalmente enjaulado, encurralado, aprisionado. Há quem diga que Abu Nidal tem sorte. Porque ao ter a chave do muro, não depende dos humores e atrasos dos soldados, como acontece em outros portões pela barreira fora. Nos arredores da cidade de Qalqilya, Abu Nidal está sozinho, mas a chave foi-lhe dada com a condição de não receber visitas. Na casa construída em 1973 mas que parece muito mais velha, ele vive com a sua mulher e os quatro filhos. Um quarto para o casal, outro quarto para os filhos. Recebe-nos na sala, a porta aberta com vista para os oito metros de cimento, o muro. Tudo começou, conta Abu Nidal, a voz cansada, quando a família foi visitar uns parentes a uma localidade próxima e, ao regressar, os soldados israelitas não o deixaram entrar durante três semanas. As plantações que tinha, de couves, alfaces, "todo o tipo de frutas", secaram. Esqueceu-as e decidiu começar um aviário - no final da conversa há-de mostrar, com orgulho nostálgico e triste, fotografias das galinhas poedeiras, todas ordenadas nas suas gaiolas, a perder de vista; ele e as galinhas, um filho e as galinhas, outro filho no mesmo cenário.Mas as galinhas, que conseguiu graças a dinheiro emprestado, estão do outro lado da estrada, daquela por onde agora não se pode passar. As galinhas definham, já não põem ovos. Abu Nidal perdeu parte das suas terras para o muro e para a estrada de patrulha. Para chegar às outras pequenas propriedades que estão do mesmo lado da sua casa, tem de passar o muro, uma vez pelo seu portão, outra vez por um outro, onde estão soldados. Demoraria dez minutos a pé. Agora pode demorar uma, duas, três horas.Os seus quatro filhos também passam o portão da barreira, que é como se fosse o da casa, todos os dias para ir para a escola, agora, um quilómetro a pé, já que é impossível usar um automóvel. Um dos filhos saiu de casa há quinze dias. "Se calhar não aguentou mais. Não faço ideia onde está. Nunca mais disse nada."Mas a chave do muro não caiu do céu para Abu Nidal. Foram precisos meses de pressão de um sem número de agências humanitárias: A UNRWA (organismo das Nações Unidas de ajuda aos refugiados palestinianos), a Cruz Vermelha, as Mulheres pela Paz, organização israelita para a justiça, comité dos direitos cívicos... Abu Nidal também foi a tribunal: "Não ganhei nada, foi só para depois um dia mais tarde não me dizerem que não fiz nada, que não protestei, que concordei."Isolado, fechado, engaiolado, quase não passa um dia que Abu Nidal não discuta com os soldados. Um dia destes, colocaram-lhe um segundo cadeado, fechado, mas apenas entre a rede da barreira. "É para me lembrarem que me podem fechar", diz. Então tudo voltaria a ser como antes: tinha esperar que eles aparecessem, duas vezes por dia, nunca à mesma hora. Agora, os soldados gritam-lhe, quando o vêem: 'Por que é que ainda estás aqui?'". "Este muro é para isso. É para nos fazer sair." O obstáculo é chamado "barreira de prevenção do terrorismo" pelos israelitas e "muro de separação racista" pelos palestinianos. Tirando os complementos, a realidade dá mais razão aos israelitas na maior parte do traçado. Até agora, foram construídos pouco mais de 180 quilómetros (no total, a barreira irá chegar aos 720 quilómetros) e destes, a maior parte é constituída por uma dupla barreira electrificada ladeada por uma estrada de patrulha de um lado e arame farpado do outro. Pouco mais de oito quilómetros, diz o Ministério israelita da Defesa, são compostos pelos blocos de cimento de oito metros de altura. Mas é precisamente perto das cidades que a barreira se torna muro. Uma das partes mais fotografadas da "barreira" é a que rodeia Qalqilya, uma cidade de 45 mil habitantes rodeada pelo muro, sim um muro, que depois se transforma na vedação que avança, torce-se, retorce-se, rodeia, serpenteia, galgando terras, culturas, pomares, incluindo casas, ladeando colonatos - segundo Zahran, vinte e cinco por cento dos colonatos judaicos da Cisjordânia estão naquela área.Há apenas uma entrada para Qalqilya. Um sinal no "checkpoint" avisa, em hebraico, árabe e inglês, que esta é uma zona militar fechada. Numa das ruas principais, um relógio parado nas sete e meia espelha a imobilidade da cidade. "Sentimos um laço prestes e enforcar-nos. O muro está a 20 metros de nossa casa. Se a cidade crescer, vai crescer para onde?", pergunta o presidente da câmara, Maarouf Zaharan. Zaharan, entristecido, olha para uma planta de Qalqilya, cidade onde antes florescia a cooperação entre palestinianos e israelitas - "era uma cidade rica" - e vê desolação. Vê uma taxa de desemprego de 78 por cento. Seis mil trabalhadores que iam a pé, muitas vezes, para Israel, ali ao lado, e que estão agora fechados na cidade. Vê os campos onde cresciam alimentos que se destinavam "a toda a Cisjordânia, até exportávamos para o Kuwait, para a Arábia Saudita", do outro lado do muro. Agricultores que não podem chegar às suas terras, criadores que não podem alimentar os seus animais todos os dias. Finalmente, vê aumentar o apoio aos extremistas. "Isto não é bom para as nossas crianças nem para as deles. Se não é possível resistir pacificamente..."Preocupa-se em dar números, o presidente da câmara. "Veja só. A cidade perdeu 46 por cento das suas terras. Trinta e dois por cento dos recursos de água ficaram do outro lado. Oitenta por cento dos habitantes da cidade vivem de ajudas." Em Qalqilya, encontramos também Jalal Ahmad Yossef Zed, 45 anos, oito filhos, um dos maiores criadores de galinhas da região. Para além dos problemas que enfrenta para olhar pelas aves, que estão "do outro lado", tem também questiúnculas diárias com os soldados. "Pedem o registo de propriedade para deixar passar os trabalhadores. Mas eles só trabalham lá, obviamente não são donos." Como têm então acesso ao trabalho? "Às vezes os soldados deixam. Mas estão a fazer-me um favor. E nunca se sabe se, nem quando, os vão deixar passar."A vida nas aldeias na zona mudou enormemente desde que existe o muro. O tempo agora mede-se em "antes" e "depois" do muro. Antes: a vida era normal. Os professores davam aulas, os alunos assistiam, as pessoas usavam os hospitais da zona, trabalhava-se, quer fosse em Israel, quer fosse em Qalqilya. Depois: muitos professores moram em aldeias diferentes daquela onde está a sua escola. Levantam-se às cinco da manhã para chegarem a tempo ao portão, que pode abrir às sete, ou às oito, para chegarem à escola, nem sempre a horas. Doentes esperam que os soldados abram o portão para irem ao hospital. Outro dia, uma família com uma criança doente esperava a chegada dos soldados para passar para um hospital vizinho. Como não era hora de abrir o portão, chamaram o médico. Que também não pôde passar, por isso, a criança foi observada através da rede. "O problema é não haver regras claras. Nunca sabemos com o que contar. O portão abre durante 15 minutos, meia hora, e depois fecha, qualquer atraso implica não passar. Nunca ninguém sabe quando é que os soldados vão lã estar. Estão sempre a mudar", queixa-se Zahran. Em Abu Dis, ainda há locais onde se consegue contornar o muro. Um deles é uma secção com blocos pequeninos, com cerca de dois metros, que está entre duas vedações de dois quintais de casas vizinhas, e onde é possível passar, à vez, trepando pedras acima, tropeçando pedras abaixo. Dos dois lados zumbem, atarefadas, umas mini-carrinhas palestinianas e antigas limusinas Mercedes, são os táxis colectivos, indispensáveis para quem precisa de se mover, já que várias etapas são precisas para passar de um lado para o outro: carrinha, "checkpoint", um pouco a pé; carrinha do outro lado, mais um "checkpoint"; andar mais um pouco, outro táxi, muro.O movimento é impressionante. Mulheres com filhos, vendedoras com a mercadoria à cabeça, estudantes, homens de cigarro ao canto da boca ou com "misbahas" na mão, até rapazes carregando borregos mortos esperam que os do outro lado acabem de passar, empoleiram-se e lá seguem. Em breve este pequeno muro vai ser substituído por outro completamente intransponível, que está cada vez mais próximo. Em cada novo pedaço vai apresentando novos "graffiti": "Sharon: I did it my way", lê-se num; "Paid by the US", lê-se noutro. "Se querem fechar, façam uma porta", grita uma árabe israelita que acabou de passar o muro. E o que havia ali há umas semanas era precisamente uma porta. Um portão que, às vezes, era fechado. Se perguntassem porquê, o soldado explicava que era para que os palestinianos se fossem habituando, já que dentro de meses não haveria porta, conta Mihal Zupan, de uma organização de protecção de direitos humanos, que nesse dia visitava a zona. Há um caso especialmente triste e conhecido de uma família afectada pelo muro, diz Mihal Zupan. Trata-se da família Iyyad. O filho Abdullah, de 10 anos, tem um problema nas pernas que o obriga a andar de cadeira de rodas. Antes, um táxi transportava-o num instantinho da sua casa no Monte das Oliveiras. Agora, um muro separa a casa da família da escola. Isso significa uma viagem de táxi que tem de rodear o muro, dando uma longa volta que se está a reflectir nos rendimentos da família e no aproveitamento escolar do menino."Vai ser mais uma dificuldade", diz Mohammed Halil, acabado de passar o muro com sacos de vassouras e esfregonas para vender em Jerusalém. Mais uma dificuldade para quem ganha 100 a 120 shekels por dia (não chega a 35 euros), saindo de casa às cinco da manhã e voltando já noite. O muro vai ser mais uma dificuldade. Uma dificuldade como alimentar a família com 120 shekels. Já Abu Adel, que vem de Hebron para uma operação aos olhos, vê impossibilidades na nova barreira. Saiu de casa às cinco e meia para chegar aqui, ao muro, às 8 horas. Nota que é um caminho que, sem os "checkpoints" ou a pequena barreira, demoraria nem uma hora a fazer no seu velho carro. Não quer pensar como será depois, quando o muro estiver completo. Não vai conseguir entrar, não vai conseguir ir ao hospital. "Só Deus ou as Nações Unidas nos podem ajudar."Passamos para o outro lado, ou seja, para Abu Dis propriamente dita. Seria a sede do parlamento palestiniano, a capital do Estado Palestina, contígua a Jerusalém, se o processo de paz não tivesse ficado moribundo em 2000. Mas quando o plano foi delineado não havia Jerusalém e Abu Dis, queixa-se Salah Ayad, que conhecemos por ser primo do dono do Hotel Cliff, que está ensombrado pelo muro, vazio. "Não havia Israel e Cisjordânia, todos temos família dos dois lados, isso era uma coisa de papel." Uma coisa de papel, tal como ter cidadania israelita: Salah não tem. O muro vai deixá-lo preso em Jerusalém, ilegal no Estado hebraico. Não vai poder ir para o trabalho que é "já ali". Ali, na Cisjordânia? "Antes não havia Israel e Cisjordânia, era tudo coisa de papel." O ministério israelita da Defesa diz que o "pequeno número" de palestinianos que ficam do lado israelita "não vai ter de se mudar" mas acrescenta que o "seu estatuto permanecerá inalterado". Ilegal, portanto. Partes do jardim do Hotel Cliff têm acessos com escadas improvisadas, escadotes encostados, num equilíbrio precário, aos muros dos desníveis do jardim, um para subir, outro para descer, indicando caminhos para chegar aos locais onde o muro ainda é ultrapassável. Um jardineiro cuida de algumas plantas no jardim, no meio da desolação total, quase no meio de nada, o muro, imponente, mesmo ao lado, lá mais a frente, um outro pedaço de muro, que em breve ficará unido a este, fechando toda a zona, o "envelope de Jerusalém".Salah Ayad mora mesmo ao lado do hotel, mas o muro deverá separá-los. Salah deverá ficar em Israel e o hotel na Cisjordânia. Olha à sua volta e suspira. "Sabe, este é um local muito estratégico e muito bonito." Olha à volta como que a adaptar-se à realidade, como se visse pelos olhos de quem é de fora, como se de repente se apercebesse que já não há grande beleza naquele pedaço de terra poeirenta devido aos jipes do exército e dos camiões, com uma enorme barreira de cimento cinzenta a aproximar-se. "Pelo menos antes era bonito." Um pouco à frente, uma cidade viu o seu cemitério ficar do lado israelita, conta. Tiveram de procurar outro sítio para deixar os seus mortos."Até Jesus teria tido dificuldade em passar o muro", ironizam alguns palestinianos. Lázaro, o fiel discípulo ressuscitado da morte, teria ficado deitado no seu túmulo, brincam, porque a barreira separa Jerusalém de Betânia, o local do milagre segundo o Novo Testamento. Como dizia Abu Nidal, o homem que tem a chave do muro, "quando se tem muitas coisas más que não podem ser derrotadas, não resta mais nada senão rir."

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