Lagostas, Vénus e Hitler no sofá-lábio de Mae West

"A beleza será comestível ou não existirá", disse Salvador Dalí. E o público corre sérios riscos de indigestão pelo excesso de consumo de beleza na exposição "Dalí. Cultura de Masas", na CaixaForum, em Barcelona. É a maior exposição do Ano Dalí, que comemora o centenário do nascimento do pintor - 414 peças que revelam a extravagante relação de Dalí com o consumo.Mas no caso de indigestão, o próprio Dalí receita os medicamentos: "Sofre de tristeza intelectual jornalística? Depressão estética, fadiga, aversão à vida, depressão maníaca, mediocridade congénita, imbecilidade gelatinosa, pedras de diamantes nos rins, impotência ou frigidez? Tome Dalinal, faísca artificial que estimulará novamente o seu ânimo."É o anúncio a um falso medicamento (Dalinal) nas páginas do "Dalí News", o diário que inventou e editou (trocadilho com o jornal "Daily News") como auto-promoção da sua obra e da sua pessoa, "com tudo o que gostaria de ler nos jornais sobre mim", disse. O diário de Dalí é uma das peças da exposição.A relação com a cultura popular foi, contudo, além deste atrevimento: "Fascinado pelos faróis dos automóveis Isotta Fraschini, os noticiários da Fox, o mudo Harpo Marx, os sofás-lábios de Mae West, os manequins, os gramofones, Dalí converteu em estímulos a imaginação criativa das tensões geradas entre duas concepções aparentemente díspares: a tradição europeia e a cultura popular fabricada industrialmente", diz o comissário da exposição, Félix Fanés, que idealizou "um labirinto, um caminho serpenteante" pelo universo de Dalí, escreve o "El Mundo".Walt Disney, surrealista?O anagrama que André Breton inventou com o nome Salvador Dalí - Avida Dollars - define o pintor como um homem sedento da popularidade que o converteu no alimento das massas, ávido de dólares. Consumo vertiginoso, ingestão involuntária da excentricidade da vida moderna, sedução da sociedade industrial, a exposição mostra o elogio dos objectos segundo Salvador - como em "Poesia na América" (1943), a primeira vez que uma garrafa de Coca-Cola aparece numa pintura, 20 anos antes da pop art de Warhol.Além de fotografias de Man Ray, Brassaï e Philippe Halsman; das ligações a homenagens de James Rosenquist, Roy Lichtenstein ou Andy Warhol; da análise do "conteúdo latente" do "Angelus" de Millet; das pernas alinhadas no "Sonho de Vénus" (o pavilhão surrealista que criou em 1939 para a Exposição Universal de Nova Iorque); das capas da "Vogue" e da "Time"; dos desenhos para publicidade; há ainda os seres "sensuais" e "mecânicos", "desdobrados na pompa eléctrica dos escaparates", como "Vénus de Milo com gavetas" (1936) - diz-se que as gavetas são influência de Freud...Também lá estão o famoso "Telefone-lagosta" (1938) ou o "Enigma de Hitler", de 1939 (uma das obras mais polémicas). Sobre o "Führer" escreveu: "Estava fascinado pelas costas suaves e gorduchas de Hitler sempre cingido no seu uniforme. Sempre que começava a pintar o suspensório de couro, a moleza dessa carne hitleriana comprimida sob a túnica militar criava em mim um estado de êxtase gustativo, leitoso, nutritivo e wagneriano, que fazia bater violentamente o meu coração."Cedo compreendeu que não podia esquecer o cinema - e não faltam os guiões de "Un Chien Andalou" e "L'Âge d'Or", que partilhou com Luis Buñuel; estudos para "A Casa Encantada" de Hitchcock; cartaz de "Richard III" (1955), onde pintou Laurence Olivier com duas caras, e a relação com Walt Disney.Qual é a história? Quando foi à Califórnia, em 1937, Dalí escreveu a André Breton que tinha conhecido três grandes surrealistas americanos: os irmãos Marx, Cecil B. DeMille e Walt Disney. Oito anos depois, Disney e Dalí assinaram um contrato para fazerem um filme. Mas o projecto ficou-se pela centena de desenhos atirados para um baú. O sobrinho de Disney, Roy, recuperou o espólio e realizou a curta "Destino", segundo instruções de Dalí. O filme está nomeado para um Óscar em 2004 (melhor curta-metragem de animação).A apresentação desta raridade é um dos pontos altos da exposição. Na conferência de imprensa, Roy Disney, 73 anos, disse que o seu tio e o pintor "tinham muitas coisas em comum e, além do amor à arte, ambos foram grandes promotores de si mesmos". Auto-promoção, perversidade ou busca da grande cultura? Esta exposição é a resposta. Viajará depois para Madrid, Flórida (EUA) e Roterdão (Holanda).

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