Dos monturos aos cemitérios públicos

Os cemitérios, como hoje os conhecemos, são uma criação do século XIX, resultado de preocupações higienistas do Iluminismo, que em Portugal tiveram no médico e diplomata Ribeiro Sanches o principal arauto."Estética da Morte em Portugal", um trabalho que no fim do ano passado recebeu um prémio extraordinário do doutoramento em Humanidades, dedica um capítulo à história dos locais de enterramento em Lisboa - onde contesta a tradição relativa ao Poço dos Negros ( ver caixa).A igreja é o local oficial tradicional das inumações, seja no seu interior seja nos átrios à sua volta, mas sempre dentro do perímetro urbano. Destina-se aos cristãos, de preferência os que possam pagar e não sejam mal vistos pela hierarquia eclesiástica. Os corpos recusados e a sobrelotação do espaço em Lisboa levaram a descrições de "cães estripando tranquilamente cadáveres e de mortos expostos à entrada dos templos pelos seus familiares para conseguir dinheiro para pagar aos sacerdotes a cerimónia religiosa, sem a qual o defunto não podia ser enterrado num cemitério cristão". D. Afonso Henriques terá fundado os primeiros cemitérios cristãos da cidade, sobre os quais foram erguidas igrejas. No seu reinado há também notícia de locais de inumação para mouros e judeus - o almocávar, um espaço fora da cidade, como séculos mais tarde virá a ser proposto. Mas serão as pestes - de 1506, 1510, 1523 ou 1598 por exemplo - que agudizarão a carência de locais de inumação, obrigando à instalação de novos "átrios", já não adjacentes aos templos nem no centro da cidade, onde se faziam enterros colectivos, algo que não devia diferir muito da vala comum. Um desses locais ficava em Campo de Ourique, na então Quinta dos Prazeres.... Mas eram tempos de emergência, cadenciados nos céus de Lisboa pelo fumo das queimas de alecrim. Para aqueles que não possuíam estatuto de cidadania, como condenados ou escravos, havia os "poços" abertos em terra de ninguém ou utilizando "monturos" (lixeiras).Mas o espaço das igrejas era também um ponto de encontro da comunidade, local de circulação, feiras de gado, procissões e festas que se desenrolavam por cima dos cadáveres, cemitérios "muito mais humanos e menos macabros que hoje em dia", refere o autor. E local de refúgio de foragidos, que no séc. XV, tinham direito a "corenta passadas" para fora do recinto sem serem importunados. A frequência por essa gente dos templos e cemitérios que os rodeavam preocupa o sínodo de Braga de 1477 "porque a casa de Deus é casa de oração e amiúde por negligência dos abades, beneficiados e tesoureiros da mesa, se converte em covil de ladrões e se faz nelas muito mal, furtos e pecados e obras sujas e desonestas". O sínodo dá ainda conta do hábito dos beneficiários da guarida fazerem as suas necessidades fisiológicas junto dos átrios das igrejas. É o cemitério-vazadouro, tradição que a tese citada ainda encontra nos Prazeres e Alto de S. João "que hoje em dia continuariam a servir de vertedouros se não fossem os muros que existem em seu redor". "Basta ver o espaço por detrás do muro da parte traseira, cheio de lixos e escombros, para chegar à conclusão de que antes deviam ser lugares para onde se lançava todo o tipo de imundícies. Este facto está patente na parte de trás destes dois cemitérios", escreve o docente.A instauração de cemitérios civis como um serviço público - decretada em 1835 - não seguiu em Portugal grandes debates ou planificações, como noutros países da Europa, pois procurou-se sobretudo responder a emergências. Foi o caso do terramoto de 1755. Muitas das vítimas foram lançadas ao mar, atadas com pesos para que se afundassem, mas "parece que esta medida nada ortodoxa para uma sociedade católica não foi bem aceite" e o Marquês de Pombal "chegou a utilizar a coacção para evitar incidentes". As teses higienistas do iluminismo ganham oportunidade e Ribeiro Sanches defende a obrigatoriedade dos cemitérios públicos e a proibição de enterros em igrejas ou em lugares habitados, fonte de pestilências. Mas com pouco sucesso. Atacado numa importante fonte de rendimento - que ainda hoje se mantém -, o clero difunde a ideia "de que os poderes públicos estavam a invadir um terreno que pertencia exclusivamente ao âmbito religioso". Fará o mesmo no século XIX, arregimentando com tal argumento carne para canhão das lutas entre liberais e absolutistas (Maria da Fonte). Assim, a transição será suavizada pelo recurso a terrenos próximos de ruínas de igrejas ou ermidas, como foi o caso do Alto de S. João. "É a fórmula que politicamente se encontra para apaziguar ânimos e não violentar sensibilidades", explica António Delgado.Os cemitérios do século XIX - tanto o Alto de S. João como os Prazeres constituem uma resposta a uma epidemia de cólera morbus que assolou Portugal em 1833 - não tinham um modelo, mas pretendia-se que fosse diferentes dos recintos religiosos. "Teve que se partir o zero", diz o autor, "nessa luta por um estilo diferente, que acaba por ir procurar fontes à antiguidade clássica e a estilos não contaminados pela igreja católica, como o da arquitectura do Egipto antigo". As necrópoles tornam-se também um "espelho das cidades dos vivos, uma espécie de cidade funcionalista estruturada por avenidas principais, ocupadas pelas elites, e com os subúrbios para a gentinha com menos possibilidades. Mas todos lá cabem", refere o docente.

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