Tarrafal, "a morte lenta" como condenação política

Há cinquenta anos, a 26 de Janeiro de 1954, Francisco Miguel Duarte, dirigente do PCP, embarcava, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, com destino a Lisboa, onde continuaria preso, primeiro no Aljube, depois transferido para Caxias. Com a saída de Xico Miguel, que aí permanecera sozinho durante seis meses, estava consumado o encerramento do Campo de Concentração do Tarrafal, oficialmente denominado Colónia Penal de Cabo Verde, a mais temível e brutal prisão política do fascismo que ficou para a história como o "Campo da Morte Lenta".Terminava assim o regime prisional arbitrário e concentracionário que durante mais de dezassete anos recebeu um total de 340 presos, mas que devido à crueldade e atrocidade do regime que aí vigorava levou à morte de 32 homens e à contracção de doenças crónicas por quase todos os sobreviventes.Criado a 29 de Outubro de 1936, no âmbito da reestruturação do regime prisional do Estado Novo, era então ministro do Interior Mário Pais de Sousa (ocupou a pasta de 1936 a 1944), o Tarrafal nunca foi tutelado pelo ministro que supostamente deveria fazê-lo. Estava sim sob tutela da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE) e a partir de 1945, da Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) - à semelhança de todas as prisões políticas do fascismo - e era dirigido directamente por Agostinho Lourenço, director da PVDE e depois da PIDE entre 1933 e 1956.O carácter excepcional e o requinte da barbárie que era aplicada aos presos levou desde o seu início a que o campo fosse comparado aos campos de concentração nazi, não obstante não haver em Portugal pena de morte. "O que mais aproximava a Colónia Penal de Cabo Verde dos campos de concentração nazis seus contemporâneos era essa faceta de depósito arbitrário de adversários do regime, sem outro título jurídico do que a 'detenção preventiva' decidida pela polícia política (a lei ainda não previa as medidas de segurança, que vão surgir nos anos 50). Na Alemanha, fora precisamente sobre a 'detenção preventiva' ou 'detenção de segurança' que assentara o sistema concentracionário, ao abrigo das leis de excepção que logo em 1933 o nazismo tinha substituído com carácter permanente ao Direito. Outro sinal da consolidação do poder arbitrário em Portugal residia no facto de a Colónia Penal de Cabo Verde (além de outras prisões políticas) nunca ter sido colocada na dependência do Ministério da Justiça, como a legislação ordenava, tendo permanecido sempre sob a tutela da PVDE, que nomeava o director do campo, fornecia os 20 ou 30 carcereiros, tinha a seu cargo a manutenção do campo, etc.", diz o historiador José Barreto.Prossegue o mesmo historiador afirmando que o Tarrafal é "justamente considerado a quinta essência do terrorismo de Estado sob Salazar", já que é o local onde foram "cometidas as maiores violências e arbitrariedades, bem como criminosas negligências, das quais resultaram em oito anos (1937-45) 30 mortos". Já depois do fim da II Guerra Mundial, nos oito anos seguintes, o número de mortos baixa para dois. Mas é ao Tarrafal que vão parar os principais adversários do regime fascista, quer sejam republicanos, comunistas ou anarco-sindicalistas. Por lá passou a elite dirigente da oposição antifascista à época e entre os 32 mortos do Tarrafal conta-se Mário Castelhano, líder da Confederação Geral do Trabalho (CGT) e director do jornal diário anarco-sindicalista "A Batalha", que foi preso em 1934 e faleceu em 12 de Outubro de 1940, de febre intestinal, mas também Bento Gonçalves, preso em 1935, secretário-geral do PCP desde 1929 até 11 de Setembro de 1942 data da sua morte, por biliosa.Enviados para o Tarrafal em regime preventivo, sem acusação ou julgamento e noutros casos com pena já cumprida - segundo os dados avançados por um dos presos, Acácio Tomás Aquino, dos 226 presos a viver no Tarrafal em 1944, 127 estavam ilegais: 72 sem julgamento e 55 já tinham cumprido pena, perfazendo, no total, um excesso de 200 anos - os oposicionistas a Salazar foram ali submetidos a um regime de "morte natural" provocada por subnutrição, alimentação estragada, falta de medicamentação e de assistência médica, maus tratos, tortura, trabalhos forçados, insalubridade.Saliente-se, entre os castigos, a "frigideira", local onde os presos eram encerrados dias a fio, duas semanas ou mais, com alimentação racionada, pão ou sopa, depois de terem sido muitas vezes espancados e de onde saíam para a enfermaria. Alguns morreram mesmo na sequência da "frigideira". Pelo menos na primeira fase de funcionamento, ou seja, até ao fim da II Guerra Mundial, o regime prisional foi atroz. O objectivo da morte dos presos nem sequer era ocultado pelos responsáveis do campo e, se o primeiro director lhes dizia abertamente que eles estavam ali para "cair como tordos", já o terceiro assumia que o seu objectivo era que ninguém saísse dali vivo.O primeiro director foi o capitão Manuel Martins dos Reis. Era director da prisão Forte de São João Baptista, de Angra do Heroísmo, e segue para o Campo que inaugura com a primeira leva de prisioneiros. Não chega a cumprir a sua comissão de serviço de dois anos, é afastado e substituído pelo adjunto em 17 de Novembro de 1937.Com o primeiro director, no paquete "Luanda"- que se encheu em Lisboa com presos, depois na Madeira e por fim deixou parte deles em Angra, onde embarcou outros tantos - chegam à Ilha de Santiago, a 29 de Outubro de 1936, os primeiros 152 condenados, grupo integrado por 34 marinheiros da Organização Revolucionária da Armada (ORA), próxima do PCP, revoltosos do 8 de Setembro de 1936, por presos transferidos de prisões políticas do continente, entre eles os grevistas anarco-sindicalistas do 18 de Janeiro de 1934, 50 detidos em Angra e ainda repatriados da Galiza - um grupo que é composto, à época, pela elite da organizações operárias e de oposição, todo o Secretariado do PCP, os dirigentes da Comissão Inter-Sindical, das Juventudes Comunistas e da Confederação Geral do Trabalho.O segundo director foi José Júlio Silva, adjunto de Manuel dos Reis, que o substitui interinamente e dirige o campo entre 17 de Novembro de 1937 e 20 de Outubro de 1938. Segue-se João da Silva, que integrara uma comissão encarregada de estudar os campos de na Alemanha nazi. Tomou posse em Outubro de 1938 e esteve no cargo até Junho de 1940. O período foi, a par do início, o pior para os presos. Segue-se Olegário Antunes, até Janeiro de 1943 e, depois, até 1945, Filipe Barros. Em 1945, com o fim da II Guerra Mundial toma posse Prates da Silva, que permanecerá no cargo até ao fim do campo e exercerá o seu mandato sob outras condições. Mas então a guerra terminara o campo democrático ganhara. Portugal realinhava a sua estratégia internacional e o Tarrafal suavizava o regime de atrocidades e arbitrariedades, embora não tenha acabado a "frigideira". Logo em 1945 são amnistiados 110 presos - numa primeira amnistia, a dos centenários, em 1940 tinham sido libertados alguns.Continuam a ser para lá enviados presos. Em 1952, estão no Tarrafal 22 presos, muitos dos que ficaram até ao fim foram os marinheiros da ORA. Outros tinham chegado entretanto e casos houve que lá estiveram por duas vezes, como foi o caso de Francisco Miguel, o irredutível fugitivo das cadeias da PIDE, que aguentou sozinho mais seis meses, até que o Tarrafal fechou, há cinquenta anos. Depois, nos anos 60 reabriu como Campo de Trabalho de Chão Bom, para presos políticos das colónias, regime em que se manteve até ao 25 de Abril de 1974.A 18 de Fevereiro de 1978 os corpos dos 32 presos mortos no Tarrafal foram transladados para Lisboa e inaugurado o Mausoléu das Vítimas do Tarrafal no Alto de São João. O Campo, esse, aguarda verba e vontade política para ali erguer um museu em homenagem à luta pelos Direitos Humanos.

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