Nem duplicidade nem propaganda

Basta ler e ouvir à nossa volta para perceber, sem a mínima sombra para a dúvida, que muitos comentários sobre a prisão de Saddam são mais motivados pela agenda do antiamericanismo, ou antibushismo se quiserem, do que pela vontade de que venha a existir um regime mais moderado, pluralista e democrático no Iraque. A agenda de muitos articulistas, bloguistas, comentaristas para o Iraque é a do quanto pior melhor e comportam-se como se não houvesse tragédia maior do que verem os americanos a terem sucesso no Médio Oriente. Mesmo quando acrescentam, a despachar, umas condenações politicamente correctas sobre o ditador, está escrito em todas as entrelinhas um enorme mal-estar com tudo que beneficie os EUA, logo, a prisão de Saddam é para eles uma grande incomodidade. Percebe-se isso, com toda a clareza, quando, num texto ou numa frase, ditas as proclamações rituais contra o ditador sanguinário, se passa de imediato para tirar conclusões que ou contenham uma nova linha de ataque contra os EUA, ou uma nova versão menorizadora do que aconteceu.Até anteontem, as críticas eram sobre a incapacidade dos EUA prenderem Saddam (e Bin Laden), matéria altamente valorizada como símbolo do fracasso americano; hoje, que o prenderam, a prisão é trivial, sem importância e até, em bom rigor, contraproducente. Era melhor que Saddam continuasse livre para não privar Bush do seu "inimigo de estimação"... Hoje, fabrica-se uma nova agenda de reclamação antiamericana pós-prisão: em particular dominada pelas circunstâncias em que Saddam será julgado. E isto não acabará nunca, a cada coisa que aconteça, falta sempre alguma coisa por acontecer. A tendência é para responder à letra, a compreensível tentação de onde os outros dizem sim se dizer não. Porém, se queremos ter uma atitude que implique um ascendente não apenas político, mas também moral - porque, tratando-se de uma guerra, meras considerações de interesse político, de "Realpolitik" não chegam nas democracias -, o pior que pode acontecer é ficarmos um espelho daqueles que criticamos. É isto que é sistematicamente ignorado nos textos de Luís Delgado no "Diário de Notícias", reagindo à controvérsia sobre as imagens de Saddam, divulgadas pelos americanos, ou sobre o "peru" de plástico, dizendo que não havia importância nenhuma na sua "artificialidade". Por coincidência, em ambos os casos, respondendo a críticas que fiz publicamente a atitudes americanas. Estes textos mostram as razões por que são muitas vezes os defensores da intervenção americana, que, ao se comportarem como propagandistas, pior fazem à causa que defendem. Escreve ele no "Diário de Notícias" com o tipo de raciocínio espelhar e incriminatório que recuso:"1.º Há quem se insurja, por cá, com as imagens de Saddam a ser analisado por um médico (...), quando se esquece as imagens dos pilotos aliados abatidos, feridos e obrigados a fazer declarações contra a Convenção de Genebra.2.º É um facto que os que agora se insurgem contra as imagens de Saddam esperariam que ele nunca fosse detido e julgado pelos crimes que cometeu. Era um género de vingança contra os EUA."Não preciso que Luís Delgado me passe credenciais sobre matéria da guerra do Iraque, e, por isso, não posso ser acusado de querer "vingar-me" dos EUA. Mas acontece que também acho mal a escolha das imagens divulgadas. Acontece que qualquer pessoa decente - e a sociedade que queremos construir é feita de pessoas decentes e para as pessoas decentes - sente-se mal com aquelas imagens, sem que por isso deixe de ficar contente com a prisão de Saddam. Por que raio é que os americanos, que podiam certamente escolher outras imagens, para o que bastava editarem o filme, foram escolher mostrar um exame médico? Havia que mostrar Saddam numa posição humilhante, e que maior humilhação há do que a de ser tocado e mexido no seu próprio corpo? É esta falta de cuidado americano que tem sistematicamente criado problemas à legitimação da guerra. Luís Delgado acha, pelo contrário, que eles fazem muito bem e não devem ser criticados.Eu sei que, para quem está no Iraque, na mira de um RPG, e que sabe por experiência exacta a imensa ecologia de violência em que está metido, existe a tentação de achar que em "tempo de guerra não se limpam armas". Se as imagens de humilhação de Saddam impedem que haja um morto americano ou iraquiano, eles não "limpam a espingarda" e mostram-nos as imagens. Estas foram divulgadas, porque eram eficazes para o Iraque, onde qualquer notícia sobre a prisão de Saddam seria sempre recebida com cepticismo. Ao se ver Saddam colaborar com o exame médico, isto mostra a sua derrota e, em países habituados à violência, a sua cobardia. Para acabar simbolicamente com Saddam, as imagens são altamente eficazes. Acontece também que as imagens são ilegais à luz da lei da guerra e isso deve ser dito. Mas Luís Delgado vai ainda mais longe e, com o humanismo e a inteligência táctica que o caracterizam, entendia que Saddam se devia ter suicidado:"Mas Saddam foi tudo menos herói - ao contrário da resistência dos seus filhos - e mostrou o que era: um fugitivo a viver num buraco e que no momento da verdade se acobardou."Ele não percebe que todo este tipo de afirmações é contraditório entre si e contraproducente para todos os que querem o sucesso desta guerra. É que a violência das imagens, a vitimização de Saddam humaniza-o. Um homem desorientado e com medo é antes de tudo um homem desorientado e com medo, muito antes de ser o ditador terrível que a gente sabe que ele era. E, se ele se matasse ou morresse em combate, teríamos hoje uma campanha de suspeição acusando os americanos de o terem abatido para não falar de uma mitificação do "herói" Saddam. Para além disso, eu sou contra a pena de morte e não desejo a morte de Saddam, só o seu justo castigo pelos crimes que cometeu.É verdade que os defensores da intervenção militar no Iraque, fragilizados pela questão das "armas de destruição maciça", e com o ónus da responsabilidade pela justificação política e moral de um conflito violento, duro e difícil, sempre no limiar do fracasso, perdem a paciência com a salva de críticas de má fé, de comparações dúplices, de comparações incomparáveis que têm que ouvir todos os dias.Sabem também que não tem qualquer comparação este erro americano com as mil e uma violências de Saddam. A comparação é por si só já ofensiva quer da racionalidade, quer do bom senso, quer da moral. Fazê-la é ter, por razões políticas, dentro de si enormes confusões morais, que colocam Bush num prato mais pesado da balança do que Saddam, o que é delirante no plano político.O que caracteriza as democracias e os Estados de direito é que essas violações não têm condições para serem nem sistemáticas, nem continuadas, não é que não aconteçam. Mas um erro é um erro, uma violação de direito uma violação de direito. Os erros devem ser corrigidos e as violações do direito identificadas e punidas, conforme a sua gravidade. Justificar tudo o que acontece porque vem dos EUA em nada ajuda a legitimar um conflito já no fio da navalha. Pelo contrário. O pior que se pode fazer, numa questão tão séria como esta, é transformar as nossas opiniões e o nosso envolvimento na causa política numa espécie de projecção subjectiva da nossa própria pessoa e importância. As coisas correm bem, levanta-se a grimpa e desdenha-se dos outros; as coisas correm mal e assobia-se para o lado e coleccionam-se os "mas". Infelizmente isto é comum no debate português, com raras excepções. Mas, insisto, o que está em jogo, é também uma ideia civilizacional de progresso e melhoria do modo de viver para as pessoas comuns, e isso implica uma moral, mesmo que seja só, em tempo de guerra, uma mínima moralia. O que isto não é certamente é um jogo de pingue-pongue com o nosso ego e o dos outros.

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