"Sou a primeira mulher mineira e jumbeira"

O pai morreu com "o mal da mina", a silicose, aos 42 anos. E ainda hoje, a mais de 200 metros de profundidade, nas minas da Panasqueira, a 30 quilómetros do Fundão, há uma galeria a que chamam "o desmonte do Joaquim das Aradas". "Era vigilante - agora diz-se capataz -, tinha quase cem homens a mando dele. Ainda aqui há muitos que aprenderam com ele", conta Lucinda Batista, 27 anos. Foi já casada e mãe de dois filhos que Lucinda decidiu experimentar a profissão do pai. Tudo começou com um anúncio de emprego que informava que as minas pretendiam admitir homens e, pela primeira vez, mulheres. Na Barroca Grande, aldeia de mineiros, a ideia de uma mulher na labuta era motivo de riso. "O povo dizia que não havia nenhuma mulher que pudesse cá entrar, o povo todo dizia que não podia ser. Fizeram apostas e tudo. Nunca cá houve uma mulher mineira, só a Santa Bárbara [padroeira dos mineiros] cá entrou. A segunda fui eu. Sou a primeira mulher mineira e jumbeira", declara com orgulho, apontando o foco de luz que traz no capacete amarelo para o seu jumbo, uma máquina com cerca de 10 metros que perfura os túneis envolta num ruído ensurdecedor. "Orgulho e teimosia, acredite que é por isso que estou aqui." Já não vai ao cabeleireiro duas vezes por semana, porque não tem tempo, mas não dispensa o batom nos lábios e o cabelo bem pintado de ruivo. Não é que se veja grande coisa na escuridão das galerias. "É que sempre fui muito feminina", explica, enfiada num fato-macaco cor de laranja e nas botas de borracha até ao joelho.Lucinda tem sido o centro das atenções na Panasqueira. Nos últimos dois meses, desde que começou a trabalhar, não têm faltado jornalistas que descem às profundezas para conhecerem a "menina das minas" - "Esse nome não é de agora. Nas lojas, por exemplo, quando era para guardar alguma coisa, dizia sempre: 'Ponha aí que é para a menina das minas.' Há quem esconda que é daqui... eu não. Sempre me orgulhei."É visível que há, entre o pessoal, quem não ache grande piada ao protagonismo de Lucinda, aos jornalistas e às reportagens sobre a mulher mineira - "A mina existe há mais de 100 anos e agora vêm cá todos porque temos uma mulher...", comenta um dos 120 homens que trabalham na Panasqueira. Outro acaba por confessar que a maioria dos colegas não concorda com a contratação de mulheres. A verdade é que são raros os que reconhecem abertamente que pensam assim. No máximo há suspiros, silêncios, sorrisos marotos... Mas Lucinda também desperta elogios. "É UM colega de trabalho que temos aí, é uma senhora, mas é UM colega de trabalho que trabalha como a gente", garante José Manuel da Silva, 42 anos, mais de metade dos quais passados debaixo de terra. O pai de José era mineiro. E mineiro também já é um dos seus filhos. A história da família está ligada à da mina - onde as mulheres limitavam-se a ter funções como servir os almoços; tarefa que, de resto, também a mãe de Lucinda desempenhou. Por isso, quando disseram a José que ia ter uma senhora como colega achou que era mentira, que estavam a gozar. Depois habituou-se: "É verdade que os homens têm o seu palavriado... e claro que às vezes a gente adianta-se mais na língua, mas se há uma senhora, a gente respeita, sem problemas.""A oferta de trabalho da empresa não era suprida pelos indivíduos que aparecem e foi isso que nos levou a pensar em alargar isto a mulheres. Para dizer a verdade, acho que, no final de contas, não será assim que se vai colmatar o défice de pessoal, porque, como é normal, não há muitas mulheres a quererem vir", explica José Duarte, 59 anos, funcionário do Departamento de Geologia e responsável por cartografar a mina e os avanços dos túneis - "Só ontem avançámos mais 300 metros. O que mais gosto na mina é que todos os dias está diferente."Com a chegada de Lucinda a empresa teve de fazer adaptações, como arranjar um balneário só para ela. "Também tiveram de pôr uma casa de banho e os homens ganharam com isso, porque nunca tinham tido casa de banho na mina e hoje têm, tal como eu", afirma a mineira. Apesar destes confortos, os sindicatos não gostaram da ideia: "Foram buscar uma lei de 1937, quando não havia o direito de igualdade entre homens e mulheres. Dizia-se que as mulheres não podiam descer à mina porque isso podia interferir com a gestação dos bebés. Só que eu sou casada, tenho dois filhos e não quero ter mais. E, depois, o trabalho que aqui se faz hoje é muito diferente. O meu pai andava aqui quase de rastos. Hoje não. Os métodos mudaram, a ventilação é melhor. Tem sido uma grande luta. Mas também há quem me pergunte como é que eu vim para aqui quando aconteceu o que aconteceu ao meu pai. É orgulho, é uma paranóia, acredite."A profissão de Lucinda é, na verdade, modelista industrial. "Ainda hoje faço trabalhos para a fábrica onde trabalhava e a minha patroa liga-me às vezes a pedir-me para eu largar isto. Mas continuo a fazer coisas, dou formação pós-laboral, isto para além de ter os meus filhos, uma menina de nove e um menino de três. Mas a gente não pode parar, não é?" Até porque o dinheiro ganho na mina é pouco. "Estou ainda a aprender, ganho quase 600 euros. Qualquer secretária ganha muito mais. Mas não é por isso que estou aqui."Lucinda quer acreditar que as pessoas já perceberam que esta não é uma profissão só de homens, é de quem a quiser. "Claro que haverá sempre quem não concorde..." Mas não se importa muito: "Hoje, na aldeia [da Barroca Grande], as pessoas dizem que me admiram." O marido, esse, nunca levantou problemas - "E veja que estou aqui com mais de 120 homens!" Quanto aos colegas de trabalho... "Sempre houve e vai haver machistas. Mas agora percebem que há uma mulher que também consegue, que trabalha muito, que trabalha como eles." Oito horas por dia, com meia hora para o almoço, que é tomado ali mesmo, debaixo de terra.À volta, os colegas esperam que Lucinda acabe de dar a entrevista para voltar a ligar os motores, desfiar a pedra, prepará-la para o turno de logo à noite, o dos carregadores da pólvora. Até que se fala de segurança, do medo de estar muitos palmos abaixo do chão. "Temos uma serra às costas, estamos a mais de 200 metros de profundidade, é lógico que tenho receio. Todos os dias quando aqui entro, entrego-me à Santa Bárbara", confessa a mineira, que elege os lisos - "as pedras que enganam, caem e não avisam" - como o maior perigo.Carlos Luís, 45 anos, 23 de mina, perto de 635 euros de ordenado, ficou cego de um olho há um ano. Era jumbeiro, hoje ensina os novatos, como Lucinda. "Tive um acidente, estava a tirar a barra do jumbo, que ficou encravada, e a marreta bateu-me na vista. Ainda cá tenho espetado um pedaço no cérebro, na parte do osso... é um bocado complicado", conta. Ainda assim, diz que medo só sentiu nos seus primeiros tempos de mineiro, quando dois colegas morreram nos lapso de seis meses. "Depois uma pessoa habitua-se a isto..."Quando se fala de Lucinda não esconde o tom paternalista, quase orgulhoso. Se continuar a haver falta de mineiros homens, diz com convicção, até "podem vir mais mulheres".

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