Os portugueses ainda não sabem estar em silêncio numa ópera

O Coliseu dos Recreios estava cheio para o concerto de abertura da Lisboa 94, Capital Europeia da Cultura. Mas o público não estava concentrado: tossiu durante todo o espectáculo. O maestro Sir Georg Solti não gostou e disse a frase que hoje, dez anos depois, ninguém esqueceu: "Se prometerem que não tossem mais, volto a tocar um extra."A frase lançou a polémica sobre o comportamento do público nas salas de espectáculos. Será que os portugueses cumprem códigos de conduta como não bater palmas entre os andamentos, estar em silêncio ou não entrar depois do início de um concerto? E esses códigos fazem sentido?"Estamos a assistir a uma diluição da atitude de culto da arte e a entrar numa era em que já não há uma distinção clara de públicos - de jazz, de rock ou de ópera. Estes dois movimentos levam à dissolução dos códigos de conduta e das hierarquias", explica o musicólogo Mário Vieira de Carvalho.Nas salas de espectáculos portuguesas há um pouco de tudo: tosses e burburinhos irritantes, dança das cadeiras dos atrasados, espectadores entusiastas que batem palmas entre os andamentos apesar dos "chius!" da plateia e há os inefáveis telemóveis que tocam em todo o lado e que alguns se atrevem a atender.Mas não é só em Portugal que isto acontece. Durante o Festival de Edimburgo em 2001, o pianista húngaro Andras Schiff recusou prosseguir a actuação até que os telemóveis parassem de tocar. E a "praga" dos telemóveis é tal que Nova Iorque estabeleceu uma multa de 50 dólares para quem deixa o telemóvel tocar durante um espectáculo. A ideia é de Philip Reed, membro da Assembleia Municipal, e surgiu após ter sido incomodado no cinema por uma pessoa que atendeu o telefone e se pôs a descrever o filme. O "mayor" Michael Bloomberg opôs-se à medida e considerou-a "desnecessária". As empresas de telemóveis também protestaram: "A cidade não pode legislar cortesia e bom senso." Apesar dos protestos, a Assembleia aprovou a lei.Em Maio, a Irlanda simplificou as coisas: 200 salas de cinema instalaram um sistema de bloqueio da emissão de rede que impossibilita o aparelho de receber chamadas.Um actor que é interrompido por um telemóvel enquanto interpreta Macbeth é o ponto de partida da peça "Sete Minutos", do actor brasileiro António Fagundes, que estreou em Novembro no Porto. Fagundes levanta questões sobre o comportamento dos espectadores no teatro e inspirou-se na sua experiência: durante a peça "Últimas Luas", um espectador na primeira fila estendeu as pernas e apoiou os pés descalços no palco. "O que é comentado em cena refere-se a coisas que acontecem normalmente num espectáculo: celular que toca, pessoas que comem bala [rebuçados], que se levantam para ir ao banheiro", diz o actor.Fagundes procura mostrar como estes comportamentos são problemáticos, interferem na continuidade da comunicação e quebram a dimensão ilusória do teatro, que "exige uma certa liturgia". "É preciso que haja uma cortina, que a luz apague na plateia, que haja um conforto. Têm que se criar condições para que se possa ouvir o que está sendo discutido em cena. Se a gente não segue essas normas, estamos criando um problema para nós mesmos."Códigos de conduta: uma auto-coacção"Os códigos de conduta decorrem da necessidade de parecer bem, o que determina se uma pessoa está ou não integrada num meio social", diz Mário Vieira de Carvalho. Uma questão civilizacional, porque é menos um regulamento do que um constrangimento social. O musicólogo chama-lhe "auto-coacção".No entanto, músicos, compositores e especialistas dizem que o principal código de conduta é o respeito - pelo espectáculo, pelos intérpretes e pela plateia. Por isso, para todos, o "silêncio é de ouro". Na maioria das salas - a Gulbenkian é uma das excepções -, as pequenas regras de conduta como desligar telemóveis, são transmitidas em "voz off". Os bilhetes também informam que não é permitido entrar na sala após o início do espectáculo. "Os códigos de conduta aprendem-se à medida que se frequentam os espectáculos. O ambiente da sala impõe por si uma conduta", diz o director do Teatro Nacional de São Carlos, o italiano Paolo Pinamonti, que já dirigiu o histórico Teatro La Fenice. Esta é também a opinião do musicólogo e director do Serviço de Música da Fundação Gulbenkian, Rui Vieira Nery: "Mesmo as pessoas que vão pela primeira vez a um concerto de música clássica e não sabem as regras de funcionamento acabam por aprendê-las naturalmente."No século XVIII, não se podia falar ainda em códigos de conduta: ir à ópera era sinal de prestígio e o verdadeiro espectáculo não se passava em palco, mas na plateia - abrir o jornal, conversar, comentar as roupas e mandar bilhetes (de amor ou de intriga) era comum durante as actuações. Estar "distraído" era estar atento ao espectáculo. Este ambiente "queirosiano" diluiu-se na Europa no início do século XIX (em Portugal só no século XX) com a emergência da burguesia e consequente devoção à arte (ver caixa).Palmas entre os andamentos: sim ou não?Hoje assiste-se a uma quase indiferença perante os códigos instituídos. "Os movimentos, as tosses não incomodam directamente a interpretação mas reflectem a desconcentração das pessoas", diz Alexandre Delgado, 38 anos, violetista e compositor. A solução passará por instituir mais códigos? Paolo Pinamonti não acredita que "hoje seja necessário estabelecer mais normas de conduta do que as que já existem e são transmitidas ao público". Há dois anos em Portugal, Pinamonti considera que o público português é "exigente", "dos mais disciplinados no panorama dos países latinos" e "demonstra sempre o maior respeito para com os artistas".Já Alexandre Delgado defende que os portugueses são "amorfos e pouco entusiastas". "As pessoas têm uma dose específica de palmas, igual em todos os concertos." Delgado chama-lhes "palmas instituídas" ou "lobby das palmas". A existência de uma norma que inibe as palmas entre os andamentos não faz sentido para o músico: "O público não precisa de estar coarctado num colete de forças."Esta ideia não é consensual. Rui Vieira Nery não concorda com as palmas entre os andamentos, porque a obra deve ser lida como um todo, tem uma "arquitectura interna" que implica concentração do músico. "E as palmas podem quebrá-la", diz. Luís Rodrigues, barítono, reconhece que se distrai com as palmas: "Costumo resolver isso pondo um ar de incomodado", diz, entre risos.A música é uma língua com regrasCríticos e melómanos perguntam-se por que há tantas diferenças de públicos nos concertos de orquestra e de câmara. Em geral, os de orquestra estão cheios e os de câmara não. "Na Gulbenkian, por exemplo, há concertos de música de câmara, alguns excepcionais, que estão 'às moscas'. É assim o nosso público", resume Delgado.A ausência de formação musical nas escolas é a razão que todos apontam para se compreender os comportamentos dos públicos. "A ópera exige um investimento intelectual e as pessoas estão preguiçosas. Habituaram-se a ter tudo à distância de um clique", diz Luís Rodrigues.Na Finlândia "frequenta-se música clássica desde a infância e há formação musical, porque o ensino a inclui", diz o maestro finlandês Tapio Tuomela, que esteve em Lisboa a dirigir a OrchestrUtopica no CCB. Por isso, "a maioria conhece as regras de uma língua que aprendeu".É isto que marca a diferença entre os públicos. Ou seja, os finlandeses são, segundo investigadores portugueses de "públicos da cultura" como João Teixeira Lopes (Faculdade de Letras do Porto), um "público habitual": têm um nível escolar elevado, pelo que a recepção cultural é feita com conhecimento dos códigos. Os portugueses são, em contrapartida, "públicos irregulares" porque se relacionam com a arte "de forma espontânea"."Em Portugal, há um público reduzido às elites. É o próprio sistema de educação que exclui as pessoas das salas", diz Vieira Nery. Reconhece, no entanto, que há cada vez mais jovens a ir a concertos. Será isto o fim do "mito" de que a música clássica é só para elites?Todos admitem que o público da ópera está a mudar. Nery diz que "o entusiasmo e a curiosidade compensam a falta de experiência". Afinal, sempre se quebraram "tabus", conclui Luís Rodrigues. "Até a questão do traje já foi superada. Hoje, um mero 'smoking' dá mais nas vistas do que um 'piercing'."

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