Aldeia da Luz já tem museu

Há uma pequena fresta horizontal na sala principal do Museu da Luz - um espaço cúbico completamente branco, chão e tudo - por onde os visitantes não vão resistir espreitar. Lá ao fundo, os pinheiros mansos no cume de uma colina marcam o lugar da antiga aldeia da Luz. Foi daí, há um ano, que foram transferidas 380 pessoas por causa do alagamento que a Barragem do Alqueva provocará quando a albufeira atingir a quota máxima de 152 metros.Neste momento, a água está nos 138 metros e a paisagem do concelho de Mourão já está invadida por várias manchas prateadas. Pedro Pacheco, um dos autores do projecto do Museu da Luz que hoje será inaugurado às 12h pelo ministro das Cidades, Amílcar Theias, diz que a água começou a aparecer há quatro meses na paisagem e que, no final, a margem da albufeira irá ficar a 200 metros do Museu da Luz. O arquitecto afirma que "não se pode falar deste lugar, da nova Luz, sem fazer uma analogia com o lugar antigo", a dois quilómetros para nascente. E que foi no meio do "nada" que a nova aldeia, inaugurada a 19 de Novembro do ano passado pelo primeiro-ministro José Manuel Durão Barroso, foi construída.Desde 1998 que Pedro Pacheco e a sua colega francesa Marie Clément trabalham "para recriar uma nova micropaisagem". Os dois foram convidados pela empresa do Alqueva, a EDIA, para a construção da zona monumental da povoação - o novo museu, o cemitério e o que fazer com a velha igreja matriz do século XV - depois de terem ficado em terceiro lugar no concurso para projectar a nova aldeia.A igreja matriz, dedicada à Nossa Srª da Luz, foi reconstruída, o cemitério (já inaugurado) e o museu desenharam-se numa linguagem contemporânea em diálogo com o xisto. "É um edifício que expõe a matéria local de uma forma muito expressiva. Ao mesmo tempo, procurámos que fosse discreto, construímos mais uma ausência, porque o museu localiza-se neste espaço sagrado."O xisto de Mourão e o outroAo percorrer as centenas de metros que separam o museu da aldeia é preciso procurar no horizonte o edifício. Meio enterrado, faz emergir no fim da Rua da Igreja uma barreira em xisto, construindo um limite para o eixo principal da aldeia. É aqui que o sol se põe.O xisto de Mourão foi escolhido porque é possível cortá-lo em pequenos blocos rectilíneos de arestas vivas. "Pode-se serrar o xisto de Mourão como o mármore", comenta este arquitecto que se formou no Porto em 1991, explicando que os muros tradicionais são construídos com outro xisto: "O azul, que é o que se vende mais, porque as pessoas gostam do rústico."É contornando o muro que se acede ao museu, com uma área bruta de 660 metros quadrados. "É uma descida contemplativa para depois entrar no museu." "Teríamos uma linha de 15 quilómetros", diz Marie Clément, se todas as pedras de xisto usadas para a construção fossem postas em fila. "O tempo longo da obra corresponde ao tempo de cortar a pedra", porque a pedreira usada está habituada a retirar lages fininhas para pavimentos e uns poucos blocos para as cantarias dos edifícios. O xisto, dizem os dois, não é usado como um mero forro decorativo, mas ergue as paredes com o betão. São blocos pequenos que variam entre 40 centímetros e 1,40 metros de comprimento e têm cinco ou sete centímetros de altura. As várias cores da rocha misturam-se, construindo uma parede de textura uniforme. "Há todos os pigmentos do ferro", continua Marie Clément, "verdes, amarelos, rosas, cinzentos, cor-de-vinho." As águas sujas da matançaNo nª15 da Rua da Igreja, Isaura Frasquilho está contente com a vida na nova aldeia, mas aproveita para dizer que o museu "não precisava de uma despesa tão grande". Com o neto de três anos ao lado, que não se lembra da aldeia antiga, diz que ainda faltam algumas obras nas 215 casas novas da Luz. "A minha vida é aqui no quintal. Eles não querem que se ponha águas sujas, mas para a matança do porco tenho que desaguar as águas. Eu ainda estou no campo, mas quem vive no meio do povo..." A matança é agora, entre Dezembro e Janeiro. Isaura e a filha que vive em Mourão vão comprar um porco e matá-lo como nos outros anos. Fazem enchidos e o resto do porco vai para a arca frigorífica. "A gente aqui chama 'cacholeira', mas para fora é chouriço de sangue." Isaura está quase sozinha na sua "faceira", porque os vizinhos desta frente de rua são "uma velhota de 80 anos que está para o filho" e outros dois que "estão para Lisboa e para o pé de Sintra". A primeira exposiçãoÉ Benjamin Pereira, um dos fundadores do Museu Nacional de Etnologia, que está a preparar a primeira exposição, quem decifra os termos usados pela proprietária do nº 12. "'Cacholeira' é da cachola do porco, uma zona do pescoço." Mesmo ao lado, a antropóloga Clara Saraiva explica que a União Europeia proíbe que se mate o porco em casa. "O problema é que a aldeia foi projectada por uma equipa de arquitectos que pensa mais o mundo urbano. Outra das queixas é de que a água da chuva entra no interior das casas através dos pátios", acrescentando que a junta de freguesia já está a proceder a algumas alterações."Este museu é um exorcismo. O cheiro da pocilga é intolerável. Ninguém suspeita o que foi a vida no campo nos anos 40, 50 e 60. Ainda bem que acabou. Mas há que reter sentidos. Foi por isso que fiz cinema. Está ali um arado. E depois? Se não está o quadro em que ele foi usado... Estou felicíssimo porque neste projecto há a sala dos audiovisuais", comenta Benjamin Pereira que elogia "o fulgor formal e plástico" do trabalho dos arquitectos.Na recolha etnográfica que fizeram há dois anos para o museu, Benjamin Pereira e Clara Saraiva entraram em todas as casas, "mas o resultado foi um ferro velho, porque o mundo rural é um resíduo". A agricultura desapareceu, o pastorícia desapareceu, a pesca desapareceu. Encontraram apenas um arado numa população constituída essencialmente por descendentes de seareiros e trabalhadores rurais. A mecanização - a primeira debulhadora chegou à aldeia em 1935 (era alugada) - dispensou os homens e os animais. A emigração foi a solução. O regresso dos emigrantes permitiu que os habitantes da Luz comprassem tractores e terras, "levando ao reinvestimento em certas formas agrícolas, nomeadamente os olivais", continua Benjamin Pereira.No museu, entre vários objectos recolhidos, vai estar uma faca feita a partir de um "trado", um instrumento usado pelos carpinteiros. "Foi forjado numa espécie de lança para fazer o que eles chamam uma matanceira, serve para matar o porco. É muito mais interessante do que uma faca de cozinha comprada num supermercado."As recolhas audiovisuais, o núcleo fundamental para Pereira, foram feitas por Catarina Mourão, Catarina Alvez Costa, Pedro Duarte, Paulo Menezes e Olivier Blanc. Hoje, diz a documentarista Catarina Mourão, será possível ver no Museu da Luz pequenas sequências temáticas retiradas de 60 horas de filmagens. "Andam à volta de cenas do quotidiano antes da mudança da aldeia que aconteceu no Verão de 2002, como as da relação com o rio Guadiana, que desapareceu. O material da mudança ainda é um bocado sensível." Depois, ficará tudo disponível no museu e a ideia é montar um filme, "um olhar subjectivo".Para Clara Saraiva, "o que é interessante para um antropólogo é o discurso que as pessoas fazem sobre a reconstrução do espaço e das vivências", porque nunca houve na Europa uma trasladação tão completa, "com os mortos e tudo".Georgina Sardinha, que vive no largo central, diz que não vai hoje à inauguração: "Eu sou amiga de ver as coisas. Mas tudo o que há cá na aldeia passa por aqui." Está ao sol a fazer "crochet", que desmancha à noite para poupar linha, uma vez que "os filhos gostam de tudo comprado". Mais à frente, passam três homem a cavalo e o tempo longo do mundo rural parece reorganizar-se. É só por momentos. O cavaleiro da frente vai a falar ao telemóvel. Museu da LuzLuz. De 3ª a dom., das 9h30 às 13h e das 14h às 17h30.

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