Noronha da Costa ou o pintor da imagem errante

Num texto antigo, de 1979, Luís Noronha da Costa afirmava: "Para nós, portugueses, a imagem foi algo de errante, tendo sido a pintura, nos seus raríssimos momentos altos, a impossibilidade de encontrar uma imagem definida." Esta afirmação parece condicionar toda a sua obra, de que o Centro Cultural de Belém, a partir de hoje, apresenta uma antologia limitada pelos anos de 1965 e 1983.A ideia da exposição partiu de Nuno Faria e Miguel Wandschneider, os dois comissários que, numa exposição anterior organizada por ambos em 1999, intitulada "Paisagens no singular", tinham apresentado obras do artista relacionadas com o género da paisagem. Na época, foi evidente para ambos que Noronha da Costa, depois dessa primeira revisitação, merecia a retrospectiva que acabaram agora por concretizar.Assim, o espaço maior do piso 1 do Centro Cultural de Belém, que costuma acolher exposições temporárias de grande envergadura, recebe agora a obra deste artista quase desconhecido para o público mais jovem. Noronha da Costa, que teve um papel importantíssimo no meio artístico português a partir de finais dos anos 60, deixou praticamente de ter visibilidade a partir de 1983, data da retrospectiva que fez na Fundação Calouste Gulbenkian. A presente exposição foca-se nesses anos cruciais e revela uma obra que sempre procurou radicalizar as questões da imagem e da percepção. No texto já referido, Noronha da Costa conclui que as perguntas que se coloca a si próprio - e ao público - relativamente à imagem talvez sejam, ainda e também, um problema de imagem.Antipintura e não sóA primeira sala, a que dá imediatamente o tom a toda a montagem, está repleta de objectos expostos por Noronha da Costa entre 1965 e 1968. Jogos com espelhos, vidros foscos, superfícies baças e alguns objectos muito simples - como as garrafas pintadas de preto ou branco, os lustres em vidro típicos dos anos 60, cortados ou não, e as esferas de dimensão mais reduzidas - combinam-se em jogos de percepção e exposição, absolutamente inéditos para a época, que suscitaram na altura o entusiasmo da crítica especializada. O pintor refere ainda (ver entrevista) o nome de Rui Mário Gonçalves, que além de crítico é também coleccionador, como estando associado à sua obra desde o início. Um outro crítico, José-Augusto França, haveria de referir mais tarde o nome de Noronha da Costa, juntamente com o de Joaquim Rodrigo, como um dos dois artistas mais importantes na arte portuguesa da segunda metade do século XX.Os objectos de antipintura, como Noronha da Costa lhes chamava - embora os recobrisse, frequentemente, de camadas de tinta opaca que lhes acentuava a materialidade - surgem acompanhados de obras destes primeiros anos: alguma pintura, colagens e sobretudo peças em que experimenta uma técnica que, no futuro, haveria de dar os seus frutos: sobre folhas de revistas de moda da época, espalha uma camada fina de óleo de linhaça que, ao secar, deixa aparente a imagem do verso sob a da frente.Esta é a primeira tentativa para interpor um ecrã entre a imagem que é dada a ver e o espectador. O facto deste primeiro ecrã ser feito do mesmo "medium" de que a pintura a óleo se serve não era já, decerto, obra do acaso. Ao utilizar o óleo de linhaça sem pigmento, Noronha convoca a própria pintura a óleo para o espaço desse ecrã. É a própria imaterialidade deste elemento que acaba por funcionar como aquilo que serve para dar a ver algo que se esconde ao olhar.Experimentação e algum "kitsch" A partir daqui, o pintor experimenta sucessivamente técnicas, formatos e conteúdos que acabam por funcionar como outros tantos modos de velar e desvelar a imagem na pintura. Próximo do romantismo alemão, que admira, e da filosofia de Heidegger, Noronha empreende esse processo de procura sem fim de algo que parece esfumar-se e fugir à medida que o artista dele se aproxima. Na série de pinturas apresentadas em seguida, utiliza pela primeira vez a tinta dada a aérografo, uma técnica que elimina completamente o contacto físico entre a mão do pintor e o suporte da pintura. Trata-se de paisagens marinhas onde, metodicamente, há um ecrã que esfuma a imagem em parte da pintura. No fundo, trata-se aqui de transpor para a bidimensionalidade as questões que os objectos já enunciavam.Numa das séries destes primeiros anos, feita a pastel e intitulada "História Trágico-Marítima", Noronha cita os dispositivos narrativos da banda desenhada para, com um humor muito próprio, tratar das desventuras possíveis de uma bandeira portuguesa (e republicana) que se afunda (ou não) sobre cenários de desastres marítimos hipotéticos. A série, que tem um óbvio segundo sentido político em tempos de guerra colonial, é bem exemplificativa da mestria com que o artista trabalhava as diversas técnicas possíveis. Noutras obras apresentadas mais à frente, há jogos com luz negra, pinturas em que o betume celulósico acentua a transparência do "spray" de tinta, filmes, fotografias que servem de base à pintura e pinturas que servem de motivo para a fotografia. A experimentação é constante em todas as séries apresentadas, mesmo se algumas, passados mais de vinte anos sobre o seu surgimento, nos parecem hoje invocar o "kitsch" mais estridente.A exposição termina com duas séries que condensam bem o trabalho deste artista. Por um lado, a imagem, mais ou menos focada, multiplica-se em quadrículas, à maneira de uma fita de cinema que fosse exposta e não projectada, num conjunto de uma eficácia irrepreensível. Essa quadrícula, que acaba por revelar um ecrã branco do qual a imagem se ausentou finalmente, desaparece depois, nas últimas obras expostas, numa explosão de manchas coloridas - os "mares" - que são, surpreendentemente, finas como um "spray" de tinta. A montagem termina com estas telas, de 1983, que assinalam a data limite escolhida pelos comissários. Tudo parece indicar que, de facto, foi durante estes quase vinte anos que Noronha da Costa realizou o seu trabalho mais significativo."Noronha da Costa revisitado 1965-1983"LISBOA Centro Cultural de Belém. De 3é a dom, das 10h às 19h30. Até 19 de Fevereiro de 2004

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