Mónica Calle

%Kathleen Gomes

Sobretudo, nada de cortinas. Nada que divida palco e plateia. Entra-se e já estão à nossa espera. Na plateia. Ou será no palco? Pouco importa, não importa mesmo nada. Mónica Calle faz sempre questão de mudar-nos de lugar. Tem sido assim, pelo menos desde "Rua de Sentido Único", em que se fechava num quarto com dois espectadores, foi assim em "Três Irmãs", onde entregava o último acto de Tchékov nas mãos dos espectadores, é assim em "Um Dia Virá", espectáculo que hoje estreia no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa. O teatro não é um lugar para medir distâncias, mas proximidades.Entrem e sentem-se. Há um fosso, do outro lado também existe uma plateia, um contracampo onde nos revemos. É aí que Mónica Calle fala, recuando em relação ao palco para perguntar a si mesma se projecta alguma sombra. "Não sou daquelas que se aventuram a mudar de assunto", diz, encenadora, actriz, espectadora, tudo ao mesmo tempo, e sabemos que está a anunciar-nos que não se desviou um milímetro do seu programa. Este: a procura de uma vitalidade no acto teatral através da redução a uma forma mínima. Dito de outro modo: voltar ao princípio das coisas. "Nem tudo é claro, mas o discurso tem de ser feito", diz ela em "Um Dia Virá". É o discurso que tem feito. Recuemos dois projectos atrás, até "Rua de Sentido Único", apresentado em Junho de 2002: "Foi um trabalho de ruptura", explica ao Y. "A viragem foi feita aí, sei que há uma diferença no meu percurso, que de há três espectáculos para cá começou a acontecer uma mudança." "Rua de Sentido Único" foi um espectáculo intimista, de partilha de si própria, que se prolongou em "Três Irmãs". Este último, apresentado em Abril deste ano na Casa Conveniente, foi "uma tentativa de passar para o outro lado", que é como quem diz, de ser espectadora, de baralhar os dados. Uma tentativa, apenas, porque Calle sente que ficou aquém: "'Três Irmãs' foi um espectáculo muito frustrante, para mim e para as outras actrizes [Mónica Garnel e Ana Ribeiro, que regressam em "Um Dia Virá"], tanto que continuámos a ensaiar todos os dias. Foi uma coisa muito violenta. Houve um desajustamento entre aquilo que queria e aquilo a que cheguei."Em "Um Dia Virá" está mais perto do que procurava, mesmo com todas transformações, dificuldades e contratempos. Este deveria ser um espectáculo de tributo a actores de teatro - a ideia inicial era trabalhar com actores mais velhos. Acabou por reunir a cumplicidade dos actores com quem tem desenvolvido o seu trabalho - Mónica Garnel, Ana Ribeiro e Amândio Pinheiro - e com eles construiu um espectáculo que convoca a memória teatral. Como "Três Irmãs", onde recuperava um texto clássico. Sobretudo, nada de cortinas. Querem artifícios? Haverá artifícios - onde há pessoas há coisas. Mas só para ela varrer tudo isso em pouco tempo. show. Luzes. Didi e Gogo caem-nos à frente, dois em um. "À Espera de Godot", Samuel Beckett. Mónica Garnel interpreta ambos, a duas vozes: Didi rouco, Gogo fanhoso, um pouco sopinha de massa. Didi de braços abertos, Gogo contraído. O dilema das botas. Contam histórias - "ajuda a passar o tempo". Didi: "Há alturas em que penso que seria melhor separarmo-nos." Impossível. Impossível não rir: Mónica Garnel oferece um irresistível "show" de histrionismo. É um dado novo no trabalho de Mónica Calle. "Nunca fiz nenhum espectáculo que fosse tão teatral como este, tão... teatro." Os espectáculos de Calle têm sido quase anti-espectáculos, de tal forma se distanciam do conceito de espectacular, de tal forma se despem. Não entendam mal: "Um Dia Virá" ainda é um espectáculo despojado: um lugar, actores, público, é tudo o que se precisa. Mas é um espectáculo onde tudo isso intervém, com correspondências entre si, exibindo, a um tempo, o esqueleto e a carne do teatro, a construção e a ilusão. Em "Um Dia Virá" até as luzes e as falhas parecem existir como personagens de uma peça maior, chamada teatro. Apetece dizer: teatro total. "Um Dia Virá" convoca "o teatro como jogo", diz Calle, "como lugar de espectáculo".É um dado novo no seu trabalho, que corresponde a uma mudança de lugar, a um espaço que não é o seu, o CCB. "Trabalhar na Casa Conveniente pressupõe um discurso, uma atitude criativa. Esse não é o primeiro espectáculo que faço no CCB, mas vim sempre para aqui com alguma imaturidade, de querer transportar o meu trabalho na Casa Conveniente. Isso é desajustado e desonesto. Há uma série de questões que este espaço levanta e isso tem que ser honesto no trabalho que vou propor. Isto lança-me desafios que na Casa Conveniente não tenho", explica. Por exemplo: "Não gosto de trabalhar com luzes, não sei trabalhar com projectores. Mas cheguei aqui e senti-me pressionada a usar efeitos de luz." Não se preocupem: Calle mantém-se fiel ao seu programa. Permanece a ideia de trabalhar com restos, com o que está à mão: os objectos em palco, suspensos por cordas, foram resgatados ali à volta. Lembramo-nos do lituano Nekrosius, onde os elementos cénicos assumem um poder metafórico, são mais do que o olho consegue ver. Permanece também uma convicção: "Primeiro sujar, em seguida limpar." É o que Mónica Calle diz no monólogo inicial de "Um Dia Virá", e que fica como manifesto de intenções. Que pode ser isto: montar o espectáculo e depois desmontá-lo.É assim que, depois do espectáculo, vamos caminhando para quase exercícios de actor, em que Amândio Pinheiro repete gestos, movimentos, primeiro arrastados, depois em aceleração. É um espectáculo fundado na ideia de desdobramento: o público tem uma plateia à sua frente, Mónica Garnel divide-se em Didi e Gogo, Ana Ribeiro é uma boneca telecomandada com algo de S&M, Amândio Pinheiro é lento e rápido. Mónica Calle desdobra-se nos actores, são eles que falam por ela, como os textos que escolhe para encenar. "A minha linguagem são as palavras dos outros, é através dos outros que eu falo", refere.memória colectiva. "Um Dia Virá" é todo Beckett: "O Inominável" no discurso inicial de Calle, "À Espera de Godot", "Acto Sem Palavras I" na cena de Ana Ribeiro e "Acto Sem Palavras II" na sequência de Amândio Pinheiro. Porquê Beckett? "Não foi uma coisa programada, não foi uma intenção do género: 'Agora vamos fazer Beckett'. O texto de 'O Inominável' foi o ponto de partida para me situar e depois as coisas foram sendo construídas. Acabou por ir dar tudo ao Beckett..."Inicialmente, Calle tinha pensado basear a construção dramatúrgica do espectáculo em "À Espera de Godot", "A Última Gravação de Krapp", de Beckett, e "Minetti" (doze personagens, mas quase um monólogo), de Thomas Bernard. Quer encenar "Malone Está a Morrer" - "sei que o vou fazer um dia, não agora, ainda é cedo" - e "o Godot todo" - em "Um Dia Virá" "está quase todo". Em Dezembro, irá apresentar uma versão paralela do espectáculo, recuperando Bernard.Entretanto, Didi e Gogo passaram-se para a plateia. São espectadores irrequietos, exigentes, insistem em voltar à cena. E Godot que não vem... Teatro total: Mónica Calle está na plateia vazia, mas teve sempre companhia. A de outros, a nossa. "A plateia está cheia, de todos os autores, de todas as pessoas que fazem teatro. Há essa memória." A memória que arrastamos de outras encenações, de outros espectáculos, de outros actores. Uma memória colectiva."O teatro é esse espaço da memória, o meu, de quem o faz e do público. Não tenho nenhum espectáculo meu filmado, tenho muito pouco material registado do meu trabalho. Levo muito a sério essa coisa do teatro ser efémero. Quando se tenta subverter isso, está-se a fazer tudo errado."E, no entanto, enquanto dura, o teatro "é um tempo sagrado" - com o que isso implica de profano. "Um outro tempo". Liturgia e comunhão. E esse tempo "é também a possibilidade de nos encontrarmos", diz Calle. Não tem feito outra coisa. "Apesar de ter estado aqui sempre, ainda aqui estou", diz no monólogo de "Um Dia Virá". Sobretudo, nada de cortinas. Uma dança, talvez. "Voulez-vous?"

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