Quem é Cecília Costa, a artista-matemática?

Com o anúncio em Berlim, no dia 5, das escolhas portuguesas para a Bienal de Sydney do próximo ano - uma das mais importantes do mundo e a terceira mais antiga depois de Veneza e São Paulo - Portugal foi subitamente despertado para um nome: Cecília Costa.Entre uma restrita lista de 50 participantes, com idades que vão dos 27 aos 70 anos e de que constam artistas consagrados como Bruce Nauman, James Coleman, Jimmy Durham e Heimo Zobernig, Portugal terá três representantes - um contingente no feminino -, anunciou Isabel Carlos, comissária geral do evento em 2004 (4 de Junho a 15 de Agosto).Os dois primeiros nomes avançados são sobejamente conhecidos - a consagrada Helena Almeida (n. 1934) e Luísa Cunha (n. 1949), uma presença discreta no meio mas com um percurso consolidado. O terceiro lançou uma incógnita.Nos dias que se seguiram ao anúncio a pergunta foi recorrente: "Mas quem é a Cecília Costa?" Ela (não) responde: "Além das coisas básicas, que se percebem quando se olha para mim - como que sou uma rapariga ou uma mulher -, vejo-me como uma pessoa curiosa. Depois, sou uma artista, e acho que essa curiosidade é o que melhor define o meu trabalho. Tudo o resto... Acho que as coisas são todas muito mais do que aquilo que parecem - aquilo que dizemos que são depende do sítio de onde as estamos a ver. Portanto, hoje posso ver-me de uma maneira e amanhã de outra e por isso não me posso comprometer com uma definição definitiva de mim mesma. Além disso, acho que qualquer pessoa espera que sejam os outros a lê-la."Emoções e razõesEstamos na sala de estar de um terceiro andar com vista para quintais, as traseiras amplas e luminosas das ruas estreitas que sobem do Rato, em Lisboa, em direcção à Estrela. Um sofá azul, uma cortina de serapilheira, livros empilhados por debaixo da janela e ao lado da televisão uma colecção de vídeos de animação infantil (há uma filha de sete anos com cachos de caracóis ruivos).Num dia de Julho, Isabel Carlos sentou-se ali numa situação idêntica. Artista e comissária não se conheciam. Combinaram encontrar-se por telefone."Acho que as coisas acontecem no sítio e na hora em que têm que acontecer. Sempre achei que se um dia tivesse que apresentar o meu trabalho tinha que ser a alguém interessado neste tema específico", explica a artista."Este tema específico" é a problemática da dualidade entre emoção e razão, que a tem ocupado desde 1999 e que é um dos aspectos fundamentais do tema escolhido por Isabel Carlos para a 15ª edição da bienal de Sydney.Inspirada em dois livros - "O Erro de Descartes", de António Damásio, e o romance "O Amante do Vulcão", da norte-americana Susan Sontag, leituras recentes à altura da elaboração do seu projecto -, Isabel Carlos escolheu como título genérico do evento "On Reason and Emotion" ("Da Razão e da Emoção"). A noção de Sul, outro dos pilares temáticos, surge do cruzamento das duas obras com uma perspectivação da posição socio-geográfica da Austrália, um país no Sul colonizado por um país do Norte, ou, se se tomar a leitura neurológica do conceito Sul e Norte (correspondendo aos dois hemisférios do cérebro), um país da emoção colonizado por uma cultura da razão."O que eu disse à Isabel Carlos foi que o meu trabalho girava todo em torno dessas questões. Não nos conhecíamos. Quando li ou ouvi (já não me lembro) que este era o tema da bienal, arranjei o contacto dela e liguei-lhe. A verdade é que senti no momento que qualquer coisa poderia acontecer, mas quando no fim ela disse: 'Pois... Acho que o seu trabalho tem que ir mesmo à Bienal' fiquei estupefacta."A artista destaca a coragem da comissária: "Acho que há pessoas que têm medo de arriscar, preferem apostar em nomes seguros, com uma carreira, um currículo. Ela - foi pelo menos a sensação que me deu - é tão segura que não precisa de confirmações exteriores." De resto, ainda que as procurasse, não as encontraria - a artista nunca procurou ver-se representada por uma galeria e também não participou até hoje em qualquer exposição individual ou colectiva dos circuitos e contra-circuitos mais convencionais (participou apenas numa bienal de jovens criadores em 2001, no Porto).1, 1, 2, 3, 5, 8... até ao infinitoApesar de ter já 31 anos (nasceu nas Caldas da Rainha em 1971), Cecília Costa é uma recém-chegada ao mundo das artes. Durante três anos, até 1996, frequentou em Aveiro uma licenciatura em Matemática Pura, abandonada quando o curso passou a chamar-se Matemáticas Aplicadas à Computação."A ideia de uma Matemática Pura, com cadeiras como Elementos de Matemática Finita, era para mim uma coisa muito poética e bonita. Depois, em vez de ser encarada como uma ciência para a descoberta, o curso passou a lê-la, essencialmente, nas possibilidades da sua aplicação. Foi quando acabei por desistir." Ingressou nesse mesmo ano no curso de Artes Plásticas da Escola Superior de Tecnologia, Gestão, Arte e Design (ESTGAD) das Caldas da Rainha.Nos seus trabalhos iniciais (sobretudo pintura) Cecília Costa aproveitou como mecanismo de construção elementos como o "número de ouro", o número irracional encontrado em todas as formas da natureza e para o qual tende, sem o tocar, a conhecida série de Fibonacci (1,1, 2, 3, 5, 8, 13, até ao infinito).Trabalhando a partir da figuração de formas do quotidiano (cadeiras, televisões...), surgiam sequências de imagens projectadas em perspectiva para o infinito. A exploração de noções de simetria e harmonia surgiu depois, estando desde então, no centro do seu trabalho, aliadas a noções de emotividade e racionalidade (uma contraposição à proposta matemática de que "simetria" ou "simétrico" é o mesmo reproduzido segundo um eixo).A investigação começou usando como suporte a fotografia e uma interrogação: se o hemisfério esquerdo/direito do cérebro comanda as funções do lado direito/esquerdo do corpo e a ele estão atribuídas ligações à emoção/razão será que isso deixa marcas físicas nos corpos?Uma vez fotografada uma galeria variada de sujeitos (sobretudo amigos e conhecidos), a artista dedicou-se a reproduzir, em espelho, cada um dos lados da sua cara e a compor novos rostos a partir do original - um inteiramente esquerdo e outro inteiramente direito numa sequência de imagens planeadas para serem apresentadas frente a frente, com cada rosto a confrontar-se a si mesmo. O tema complexificou-se quando a artista chegou à conclusão que, para melhor se perceber a conflitualidade entre a razão e a emoção dentro de um individuo, teria que levar os sujeitos a viver uma situação extrema de sobreposição das duas - foi assim que surgiu o vídeo "Le Pli" ("A Dobra") que Isabel Carlos escolheu para a Bienal de Sydney (ver caixa)."Apesar de se poder dizer que cheguei às artes plásticas em crise com a matemática, houve elementos dela que, inevitavelmente, trouxe comigo. Uma das coisas que eu gostava que as pessoas percebessem é que a matemática está em todo o lado, que não é uma coisa artificial. É uma leitura da realidade como outra qualquer e que, ao contrário do que normalmente se pensa, também se intui.""A ideia de uma Matemática Pura, com cadeiras como Elementos de Matemática Finita, era para mim uma coisa muito poética e bonita"

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