Torne-se perito

Coetzee, o boer que criticou o sistema

O escritor sul-africano J. M. Coetzee é o novo Prémio Nobel da Literatura, anunciou ontem a academia sueca. Conhecido sobretudo como romancista - um dos maiores vivos e o mais influente de língua inglesa, defendem alguns críticos -, mas também um aclamado ensaísta e crítico literário, Coetzee é agora esperado em Estocolmo a 10 de Dezembro, para a cerimónia de entrega do prémio (1,1 milhões de euros).A avaliar pelos antecedentes, porém, não há garantias da sua presença: Coetzee, uma figura esquiva a grandes manifestações sociais, recebeu o prestigiado Booker Price em 1983 (com "A Vida e o tempo de Michael K.") e de novo em 1999 ("A Desgraça"), mas não se deslocou a Inglaterra em nenhuma das ocasiões. Fez-se representar pelo seu agente.Nascido em 1940 na Cidade do Cabo, mas a viver em Adelaide, Austrália, desde a publicação de "A Desgraça" - obra frequentemente lida como declaração definitiva da sua incapacidade de continuar a viver na África do Sul -, Coetzee foi distinguido com um prémio que muitos pensam chegar com 12 anos de atraso. Logo em 1991, quando a África do Sul recebeu o primeiro Nobel da Literatura (entregue a Nadine Gordimer) houve uma onda de decepção pública.Para as vozes mais críticas, a academia falhou então ao optar por distinguir feitos políticos (ou, pior, "panfletarismo superficial"), não atendendo ao verdadeiro mérito literário - o que poria autores como Andre Brink e Coetzee em clara vantagem.Ontem, a academia enalteceu o seu brilhantismo analítico e rara capacidade compositiva. E sublinhou: "Ao mesmo tempo ele é um céptico escrupuloso, implacável no seu criticismo ao racionalismo cruel e à moral de cosmética da sociedade ocidental."Um boer incómodoCom uma carreira iniciada nos anos 70, Coetzee, de origem boer, desde sempre escreveu em inglês (apesar de ter conhecimentos bastante profundos de afrikander - traduziu aliás para inglês autores publicados nessa língua). Começou com "Duskland" (1974), dos poucos não publicados em português, mas só com a sua terceira ficção, "À Espera dos Bárbaros" (1980), metáfora sobre a condição humana centrada nos problemas de adaptação de uma idosa que sempre viveu, em oposição, sob o regime do Apartheid, Coetzee ganharia alguma notoriedade na África do Sul.A aclamação internacional chegaria com o primeiro Booker, "A Vida e os tempos de Michael K." (1983), e a consagração definitiva com o segundo, "A Desgraça" (1999), tido como um dos mais emblemáticos exemplos da mestria com que Coetzee consegue equacionar metaforicamente o seu ideário político-social com uma qualidade literária que ilude um mais basilar panfletarismo.Romance do momento de grandes tensões rácicas do período de transição do Apartheid para uma anunciada democracia, "A Desgraça" toma como personagem principal David Lurie, um professor de 52 anos que, depois de se envolver amorosamente com uma aluna, e por isso perder o seu emprego, vê a sua estabilidade desmoronar-se. De visita à filha, que vive isolada numa quinta, Lurie acaba por assistir à violação desta pela comunidade negra. A gravidez daí decorrente - e a indecisão sobre a hipótese de um aborto - encerra o paradigma do período político vivido nessa altura no país. No fim, Lucy acaba por assumir a gravidez - é a declaração de Coetzee."Ele sai do politicamente correcto e afronta uma posição de fundo", diz o crítico literário José Manuel Cortês, que destaca a influência do russo Fiódor Dostoiévski na obra do romancista (há ainda Kafka).Se todas as suas personagens centrais são brancas, isso relaciona-se com um enorme sentimento de culpa, que encontra o seu par em Dostoiévski, "o grande escritor da culpa", diz Cortês. A academia, aliás, sublinhou ontem o "padrão recorrente" da sua obra, cujos personagens têm sempre que "fazer viagens em espiral descendente para a sua própria salvação"."Coetzee é infinitamente melhor e mais interessante que Gordimer. Gordimer critica o sistema, mas é uma crítica superficial. Ele escreve em inglês, mas é um boer e isso significa que é infinitamente mais complexo", diz escritor angolano José Eduardo Agualusa. "Ele faz uma crítica muito mais radical, com um olhar muito mais profundo sobre si próprio." E sublinha: "Coetzee ultrapassou os interesses dele e da África do Sul. Normalmente, os escritores ocidentais escrevem sobre tudo e os africanos escrevem sobre a sua quinta, África. Coetzee recusou isso: a matéria dele é tudo."O próprio Coetzee já falou a esse respeito: "Não sou o arauto de uma comunidade nem de qualquer outra coisa. Sou alguém em demanda de liberdade (como qualquer prisioneiro agrilhoado) e que constrói representações de pessoas a escapar-se das suas cadeias e a virar a cara para a luz."Os restantes Nobel, a começar pelo de Medicina, serão anunciados diariamente a partir de segunda-feira.

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