"O orgasmo vertical"

1 - Vou começar por nada. Aquele delicioso provérbio que diz "o nada fazê-lo em casa", que pode ter tantos sentidos quantos os sentidos que lhe quisermos dar (de sentidos também vou hoje falar muito). Ou aquele espantosa expressão jurídica, já usada por David Mourão-Ferreira para título de um conto: "Aos costumes disse nada." Costumes, neste último caso, eram (são?) as relações de parentesco, amizade, ódio que têm as testemunhas em relação às pessoas sobre as quais vão depor. Juízes ou advogados podem (podiam?) invocá-las para invalidar um depoimento. Mas, se achavam que não eram essas relações que punham em causa o testemunho, aos costumes diziam nada. Se já houvesse um poucachinho, um todo nada, ou um tudo-nada, lá se ia a testemunha. Já os costumes tinham que se lhes dissesse, ou seja, já havia que dizer aos parentes, aos amantes, aos amigos, aos inimigos. E os costumes, que fez você aos costumes?Neste caso, sou eu o costume e vou ter que me acostumar a que me digam tudo, ou, pelo menos, muito.Mas já vou aos costumes. Por agora só quero dizer - a propósito do nada - que é dos costumes que toda a gente gosta de dizer tudo, sobretudo quando tem que ver com o nada que é de fazer em casa. Até porque, como também se diz, quem sempre se recata nunca acaba nada. Por isso, para me ir chegando aos sentidos, e aos costumes que hoje aqui me trouxeram, discordo de quem diz que, neste mês de Agosto, a imprensa de costumes aos costumes diz nada. Sejam eles questionários de Proust, sejam elas crónicas de jogos de Verão, vai-se dizendo muita coisa. Adequada? Eis a questão.2 - Nesta semana dei comigo a ler uma entrevista com o psiquiatra José Gameiro ("DNA", 23 de Agosto), entrevista que muito entusiasmou o meu esporádico colega de página Eduardo Prado Coelho. Na dita entrevista, a entrevistadora (Anabela Mota Ribeiro) pede-lhe que explique porque é que "numa cidade como Lisboa um terço dos casamentos e uniões de facto se dissolvem".Dissolver já teria que se lhe dissesse (o açúcar é que se dissolve no chá), mas sobre tal dissolução não se diz nada. O psiquiatra explica que esse facto sociológico está farto de ser explicado pela sociologia. Disserta sobre o aumento da esperança de vida e sobre a felicidade, que, afinal, não parece ser ideia nova do século XVIII (como pretendia Saint-Just antes de ser guilhotinado, supõe-se que com alguma infelicidade), mas do século XX ou XXI. Antigamente (não percebi bem se falavam os sociólogos, se falava o psiquiatra), quando a esperança de vida era de 50 anos, as pessoas continuavam casadas, porque assim como assim não valia a pena muito barulho por causa de uma galinha que durava dez anos e mais nada (é claro que agora sou eu a falar e não José Gameiro, que é pessoa séria e não fala assim). Agora (volto a José Gameiro) "que a esperança de vida é 70 e tal, 80 anos", "aos 50 anos tenho a noção de que ainda vale a pena separar-me, ainda posso construir a felicidade". E assim, esperança de vida + felicidade + movimento das mulheres, "que foi decisivo e começou nos anos 60", aí temos o casamento no galheiro, ou, segundo Gameiro, "a vontade de repetir a dose". Logo, o aumento do divórcio é imparável. "No limite - e isto é muito discutível, é ficção científica - daqui a 50 anos a maior parte de nós terá dois casamentos." Há quem se fascine. O "o admirável caos do amor", titula Eduardo Prado Coelho (Agustina diz que o amor é o defeito que lhe inspira mais indulgência). Eu não percebo bem onde é que está a novidade. Henrique VIII, que não esperava viver até aos 70-80 anos e não tinha telemóvel (diz-se na entrevista que o telemóvel mudou muito as relações conjugais), casou seis vezes e só foi excepção porque no século XVI ainda não se usava a expressão "uniões de facto". Porque, se fôssemos a elas (de facto), verificávamos que a monogamia ou a monoandria nunca proliferaram entre o género humano. A insistência da Igreja no pecado da carne não começou em 1960 e não foi mania de padres celibatários. Isto, para não ir até à civilização greco-romana ou a outras culturas a que a ideia de felicidade era alheia. Misturar sexo, felicidade, emancipação das mulheres e longevidade parece-me andar muito para trás em relação aos bons velhos tempos do dr. Freud, sem querer, nem por sombras, meter foice em seara alheia ou em casa de ferreiro espeto de pau.3 - Hoje lêem-se estas tiradas. Há coisa de cem anos liam-se outras, igualmente aterradoras.Digo-o, porque como conversa puxa conversa, me lembrei, a propósito do "puro sexo" de Gameiro e Prado Coelho, de uma terrífica descrição da morte de Antero, que em tempos li num dos volumes da "História de Portugal" de Pinheiro Chagas (daqueles já escritos depois da morte dele).Porque se suicidou Antero, num banco de jardim público de Ponta Delgada, às 7 e meia da noite de 11 de Setembro, quando tinha apenas 49 anos? Se querem saber, vai ser uma longa citação:"Anthero, porém, soffria também physicamente a terrível doença medular, gerada pelo seu vicio de onanista impenitente, e após a qual veio a neurathenia com todo o seu cortejo de inconcebíveis horrores.Anthero foi um desgraçado sublime, que não conheceu a suprema alacridade da vida - a mulher.Morreu sem saber o que era o amor, elle que tinha uma alma de poeta!Morreu sem haver conhecido a femea, elle que era uma virilidade mental do mais firme quilate!"(...)(...) Como Newton, como o Infante D. Henrique, como Latino Coelho, Anthero de Quental era um insexuado indifferente à femea e vivendo apenas de uma cerebrização superior, onde queimava, sem as naturaes compensações da carnalidade dos sexos ou dos sentimentos que os atrahe e une, todo o phosphoro do seu talento, toda a vibratilização dos seus músculos.Por isso envelhecera prematuramente, devorado por esse vicio atroz e repulsivo, que nem ao menos tem a defende-lo a delicadeza da arte ou a expressão de uma finura de gosto."Longe de mim comparar esta assombrosa tese sobre o poeta dos sonhos e das incertezas com as hipóteses e os argumentos de José Gameiro. Mas, tal como há cem anos médicos e historiadores acreditavam nos "horrores" do "vicio atroz e repulsivo" e não hesitavam levar à conta dele o destino do Infante e o de Newton, hoje, virando totalmente o bico ao prego (salvo seja), o discurso da felicidade através de "caos do amor" da "repetição da dose", do sexo tântrico ou daquilo a que Eduardo Prado Coelho chama "uma espécie de orgasmo vertical", parece-me cada vez mais tão gerador de nadas como a pseudocientífica explicação para o suicídio de Antero.Dislates contraditórios, mas dislates equivalentes. "A suprema alacridade da vida" ou a "sexualidade plena e eufórica" sem "perda térmica".Libertámo-nos felizmente dos fantasmas de chagas, que ainda foram acenados dezenas de anos depois? Se nos libertámos (e não ponho as mãos no fogo, mais uma vez salvo seja), não nos libertámos, como também diz José Gameiro, e aí dou-lhe inteira razão, "de uma enorme pressão que é social, cultural e mediática, que associa a felicidade à actividade e à satisfação sexual".4 - Voltando ao meu nada ou ao tudo-nada, porque nem nada nem tudo se casam com estes casamentos.Se hoje é impossível levar a sério as páginas transcritas sobre a "terrível doença medullar" provocada pelo "vício impenitente" de Antero, elas, à época, não representavam excentricidade alguma (nem beatério, já que o autor não escamoteia o seu declarado anticlericatismo), mas ecoavam uma convicção "científica", uma convicção moral e uma convicção cultural.Em todas as épocas, e em todas as discussões sobre sexo (das mais ortodoxas às mais heterodoxas), essas três ordens são convocadas ou para exorcizar "les mauvaises habitudes" (como dizia uma das inglesas do filme de Truffaut), ou para a apologia do excesso. Nos mais santos teólogos, como nos mais santos libertinos (em Sade, por exemplo) nunca faltaram a fundamentação "científica", a fundamentação moral e a fundamentação cultural. O nosso tempo não constitui qualquer excepção. O que julgam "novo" foi inventado pelo primeiro homem e pela primeira mulher, um com o outro ou um sem o outro."Não é que ser possível ser feliz acabe", como um dia escreveu Jorge de Sena, mas tudo é sempre igual doutra maneira. "Carta de Guia de Casados". Ou "ideias novas sobre o casamento". Se lermos bem, tirando alguns acidentes, o essencial ficou na mesma de D. Francisco Manuel ao dr. José Gameiro.Qual essencial? Esse que estava na origem e estará no fim, onde não houve nem haverá homem nem mulher, metades separadas de um corpo único que se buscam num "hábito quebrado" que se não reata senão noutros lugares. Nos dias de ontem como nos dias de hoje, onde estão o homem e a mulher do "orgasmo vertical", no que quer que todo esse nada seja?Voltando a Sena (volto sempre): "Quando, ah quando, os homens deixarão / de crer em tudo, de exigir que tudo / seja como tudo? Se tudo é como tudo / o nada é como o nada? Mas tautológico / é só o medo, o medo de escolher / entre duas coisas, dois entes, dois momentos." O poema continua. Eu não. O "nada é fazê-lo em casa". Não em público. Muito menos n'o PÚBLICO.Só mais um pedido mais para acabar menos solenemente. Como também "sempre quis saber tudo sobre sexo, mas tenho vergonha de perguntar", importava-se, Eduardo Prado Coelho, mesmo em carta particular, de me explicar o que é "o orgasmo vertical"?

Sugerir correcção