António José da Silva - Em nome da Santa Madre Igreja

Maio de 1736, Lisboa. Uma figura de "mediana estatura, magro, cabelo castanho, que usava curto, tez clara e feições miúdas" (Azevedo, p. 203), desce o Bairro Alto em direcção ao Socorro. Vai apressado, que a sua vida é uma roda-viva. No escritório de Baltazar Mendes da Silva esperam-no vários processos, que deverá organizar para que o irmão na manhã seguinte, ou ainda nessa noite, os possa estudar para os defender no dia seguinte no tribunal. Os amigos cortam-lhe o passo e desafiam-no a beber uma caneca de cerveja ou um pichel de tinto ali no botequim do Hospital de Todos-os-Santos, ao Rossio, mas ele escusa-se. Está realmente com pressa, vai cear a casa, dar uma palavra à família e safar-se depressa, que é dia de ensaio geral, amanhã estreia-se "Anfitrião". Além disso, ele é um homem frugal, um ovo cozido e uma salada bastam-lhe para acomodar o estômago à noite. Precisa de tranquilizar o irmão, assegurar-lhe que o processo pendente pode aguardar uns dias, é só dar os últimos retoques na cena do pátio do Conde de Soure, assegurar que o camarote das damas, bem como o que lhe fica abaixo, destinado aos "frades", melhor dito, dignitários eclesiásticos, estão limpos e com as persianas ajustadas. Tudo se há-de resolver, Baltazar bem sabe que ele é "poeta e escritor de farças" e "advogado nas horas que lhe sobravam do entretimento da pena e do teatro" (Azevedo, p. 180).Quem agora lhe tolhe o passo é António Isidoro da Fonseca, traz boas notícias, o "Labirinto de Creta" está no prelo e praticamente pronto. O impressor quer saber se o autor vai dar ainda uma última revisão às provas e, a propósito, já pensou na próxima obra a editar. Que sim, está já a trabalhar na próxima peça, "As Variedades de Proteu" [que se estreará em Maio do ano seguinte], mas quanto à revisão e fixação do texto é melhor que o Chico Ameno se ocupe disso, que ele não tem tempo. É que o Ameno também se queixa do mesmo, de falta de tempo, lamenta-se por seu lado o impressor, descorçoado com a (des)atenção que lhe dedicam os dois amigos."Estamos em crer que Francisco Luís Ameno viu (se é que não retocou para publicação) muitos desses manuscritos. Nada terá podido fazer às já impressas por Isidoro da Fonseca, por já se encontrarem 'a correr'", opina J. Oliveira Barata na sua tese de doutoramento (p. 192). No mundo hostil em que se movimentava O Judeu, estes dois amigos vão ser inestimáveis, garantindo-lhe a memória dos tempos que o Santo Ofício lhe queria roubar. A Ameno se deve a edição das "Obras Completas", em 1744, com texto revisto pelo editor, expurgado de algumas deixas que apimentavam a execução na "casa de divertimento" e ficavam no ouvido de quem assistia, para glória e desgraça do "gracioso" autor. Coube a Isidoro da Fonseca imprimir quatro obras de António José, embora não assinadas, por o autor estar referenciado pelo Santo Ofício, mas que lhe deram a possibilidade de ser reconhecido ainda em vida, mesmo se só nos meios teatrais, como o criador da ópera portuguesa e o grande comediógrafo nacional depois de Gil Vicente.É opinião de Alberto Dines que são estes dois amigos os autores de uma glosa trágica, "Há na glória padecer", com que eles (ou outros) celebraram a memória do ser que a Inquisição queimou em "auto público da fé" no Terreiro do Trigo, na madrugada de 19 de Outubro de 1939. "As décimas atribuídas a António José e que teriam sido declamadas pouco antes da execução" realçam uma das suas facetas mais características: a capacidade para o trocadilho, para transformar uma banal frase num irónico gracejar sobre as naturais inclinações humanas. "Mote que glosou de repente Antº José da Silva quando estava na Relaçam [Limoeiro] para hir a queimar de garrote em 18 de Outubro de 1739", assim principia a página manuscrita ("Vínculos do Fogo", p. 901). São 40 versos, agrupados em quatro décimas, que se terminam pelo mote "Há na glória padecer". Na primeira décima fala-se do poeta comediógrafo, por interposta personagem luciferina, e das "penas" que o seu talento lhe trouxe: "Nesse tempo em que passou/pouco antes de descer/penas começou a ter/porque chegou a admirar,/que se no céu há pesar/há na glória padecer.""Mesmo que o autor tenha sido outro", e foi, pois por muito "gracioso" que fosse o poeta de "Guerras do Alecrim e da Manjerona", nesses derradeiros dias de terror, em que já se sabia condenado, mas desconhecia se a mulher, a mãe e o irmão também lhe iriam fazer companhia na fogueira inquisitorial, ele ainda luta por negar as acusações do Santo Ofício de heresia e impiedade.- Acusado, sabe qual o castigo habitual para os relapsos do crime de judaísmo ou de uma qualquer outra heresia?- Sei-o muito bem: é a pena de morte.Relapsos eram "os réus que depois de reconciliados reincidiam na heresia (...) para tais réus não havia misericórdia e deviam ser condenados ao fogo irremediavelmente" (Elias Lipiner: "Terror e Linguagem", Círculo dos Leitores, 1999).Foram vários os estratagemas a que recorreram os juízes do Santo Ofício para comprovar a acusação de relapso. Frèches dá conta de que a dado passo pensaram mesmo em alterar a acusação para "impiedade", o que, dado que o réu se apresentava como "negativo", ou seja, "negava totalmente as culpas", e era "convicto", isto é, "teimava em negar a sua heresia", isso era mais que suficiente para ser "relaxado ao poder secular", quer dizer, "piedosamente condenado à morte sem efusão de sangue", logo, queimado.Poucas dúvidas restam, lendo o processo, de que, quando, a 5 de Outubro, o 3º marquês de Alegrete, na sua função de "familiar" do Santo Ofício, prendeu António José da Silva, este estava antecipadamente condenado.A sua prisão, coisa raríssima dentro do estrito formalismo daquele tribunal, foi feita ilegalmente, por ordem verbal do próprio inquisidor-geral, cardeal D. Nuno da Cunha, que a não podia dar porque não havia testemunhas acusando António José. Quem Simão Rodrigues da Fonseca denunciara fora Páscoa dos Rios, que lhe dera abrigo, e a própria mãe, Maria de Valença, que saíra no auto da fé de 1732. Saiu condenada a cárcere perpétuo, ou seja, não podia ausentar-se do seu domicílio sem conhecimento e autorização da Inquisição. Pobre e sem apoio de família, perdida no Brasil, fora recolhida por Páscoa dos Rios. As duas mulheres, com outras, estavam em jejum do Iom Kipur quando os nobres oficiais irromperam casa adentro, tendo sido o próprio Simão que dissimuladamente lhes abrira a porta. Páscoa dos Rios era duplamente cunhada de António José da Silva. Casara com o irmão deste, André Mendes da Silva, e António José casara com a irmã, Leonor Maria, ambas naturais da Covilhã, da família dos Fróis. O casal André e Páscoa dos Rios vivia para os lados do Campo de Sant'Ana, enquanto António José e Leonor moravam no Socorro, paredes meias com a mãe, Lourença Coutinho, e com o irmão Silva mais velho, Baltazar. Os irmãos e as irmãs reuniam-se com frequência, o irmão Baltazar mais raramente, pois ostensivamente afastara-se de tudo o que pudesse parecer reunião judaizante. Só que, porque andasse ocupado no teatro, na revisão das provas tipográficas, em trabalhos forenses ou simples encontro de amigos, António José há quase um mês que não ia a casa do irmão André. Sabia vagamente que a cunhada tinha aberto a porta a mais um hóspede gratuito, mas, ao que ressalta dos autos, nem ele vira Simão, nem este o vira desde que, há mais ou menos três semanas, se instalara de armas e bagagens na casa de Sant'Ana.Leonor Maria e António José, junto com a mãe Lourença, foram detidos na sua casa, com base numa esfarrapada denúncia de uma escrava, Leonor Gomes, tão aleivosa que acabará por não ser tida em conta para os autos. Mas, mesmo esta escrava, que morre nos cárceres dos Estaus, sede do Tribunal da Inquisição (ao Rossio, onde hoje está o Teatro Nacional), acusa sobretudo as duas patroas de serem elas quem preparava as cerimónias e ordenava os jejuns.Para legalizar a detenção de António José foi preciso o depoimento de Simão, no dia 7 de Outubro. Nesse dia, interrogado este sobre se a mãe, Páscoa dos Rios e as demais mulheres esperavam a chegada de mais alguém, confessa uma série de nomes, entre eles o de António José e o irmão André.Dado que o depoimento da escrava Leonor Gomes se revelara improcedente e dado que o regulamento obrigava a que cada acusado só o fosse mediante dois testemunhos concordantes, faltava um delator para António José. A menos que o preso confessasse. Daí que até 28 de Novembro de 1737 se tenham sucedido quatro interrogatórios, com António José sempre a negar as acusações de heresia. A acusação precisava de mudar de estratégia, mas não sabia como.A solução foi achada pelo alcaide da prisão, que decidiu pôr o detido sob espia, um método de vigilância permanente sem que este disso se apercebesse, e do qual se faziam relatórios sobre as atitudes que ele revelava: se rezara ou não, tipo de orações feitas, jejuns ou não e em que dias...A crer nestes relatórios, o preso jejuava abundantemente, limitava-se ao pão do almoço e a uma refeição muito ligeira à ceia: um caldo, um ovo cozido e pouco mais. A vigilância do preso da "cela 6 do corredor meio-restaurado" iniciou-se no dia 6 de Abril de 1738 e prosseguiu até ao dia 24 de Setembro, quando lhe foi lido o libelo acusatório, instruído com essas vigilâncias e com as declarações de dois "bufos", que expressamente lhe meteram no cárcere. De 5 de Outubro de 1737, quando foi preso, a 18 de Outubro de 1739, quando o levaram para o auto da fé, passou António José todo o seu tempo nesta cela. Sabemos o que fazia nesta solidão, quebrada por duas vezes com a presença breve de "bufos", porque os relatórios dos espias são monotonamente detalhados. A sala era abobadada, com grande pé-direito, "de quatro metros por dois e meio, sem outra abertura que a entrada, defendida esta por duas grades separadas pela grossura da parede". Tinha uma esteira de tábuas para cama, uma tina para a água própria, com dois púcaros, um lavatório e outra tina para as águas sujas que era esvaziada uma vez por semana. A "luz escassa (...) vinha das janelas fronteiras, lançadas sobre os pátios interiores (...) À roda silêncio de sepulcro" (Azevedo, p. 201). Deram-lhe, para se edificar, um Livro de Horas, que raramente folheava. Era toda a leitura autorizada. Assim viveu (?) dois anos, até ser queimado. Porquê esta sanha contra uma pessoa que alguns padres de São Domingos qualificam de discreta e exteriormente de trato amável, que tinha um teatrinho no Bairro Alto, onde montava peças de bonifrates com aplauso geral? Por isso mesmo, argumenta António José Saraiva, desenvolvendo a sua tese de que era a própria Inquisição que "fabricava" os criptojudeus para justificar a sua permanência. Para o autor de "Inquisição e Cristãos-Novos" (Ed. Estampa, 1985), era necessário, para manter o terror e o poder inquisitoriais, mostrar em grandes processos até que ponto a sociedade estava "corrupta" pelo mal da heresia. António José da Silva, pela sua popularidade nos meios teatrais, foi a vítima escolhida para este período de introdução das modas operáticas italianizantes, tal como em 1624 o fora o ilustre António Homem na Universidade de Coimbra, quando esta procurava reformar-se do ensino escolástico.Além disso, a origem brasileira do comediógrafo permitia enviar sinais para a colónia, que durante muitos anos estivera a coberto das "visitações" do Santo Ofício, graças ao alvará de D. João IV (6/2/1649). Por esse diploma se criou a Companhia Geral do Comércio do Brasil, à imagem da Companhia das Índias holandesa, "concedendo aos cristãos-novos portugueses a isenção de confisco dos bens pelo Santo Ofício". Uma medida fortemente contestada pelos inquisidores "visto serem os habitantes delas [regiões] na maior parte de nação hebreia" (J. Gonçalves Salvador: "Os Cristãos-Novos: Povoamento e Conquista do Solo Brasileiro", Ed. Pioneira, São Paulo, p. 49).A oportunidade para pôr fim a esse regime benévolo surgiu em 1706, através do rancor de uma mulher despeitada, Catarina Soares Brandoa, a "perra perdigueira", que foi ao Santo Ofício denunciar 169 pessoas que ela conhecia no Rio de Janeiro e aí judaizavam. Foi assim decepada a próspera burguesia carioca, e com ela as suas elites (Dines, p. 535). Os pais de António José, o considerado advogado João Mendes da Silva e a sua impetuosa mãe, Leonor Coutinho, estavam na lista dos denunciados e é por eles e com eles que António José chega a Lisboa, com sete anos. Não mais daqui sairá até ao fatídico dia 19 de Outubro de 1739. O pai faleceu em 1735, quanto ao resto da família, com excepção do irmão Baltazar, foi toda no "auto público da fé" de 18 de Outubro de 1739, mas depois de "abjurar" pôde recolher às celas de penitência. Os juízes saciaram-se com o corpo de O Judeu.A influência de António José da Silva no teatro português foi reconhecida bem cedo, e se ele anda agora afastado dos nossos palcos, isso não impede que o título de uma das suas peças, "Guerras do Alecrim e da Manjerona", se tenha convertido num ditado popular. "Representar hoje o teatro d'O Judeu (...) é uma das muitas formas que contribuirão para recuperar o espaço lúdico (...) como um bem em vias de extinção, neste tempo de metamorfose", garante Oliveira Barata no seu ensaio biográfico (p. 603).Bocage (1765-1805) era um leitor assíduo de O Judeu e disso dá conta José Maria da Costa e Silva no "Ensaio Biográfico-Crítico sobre os Poetas Portugueses", citado por Camilo, outro admirador incondicional do autor malogrado. Diz ele que foi encontrar Bocage gravemente enfermo, mas a rebolar-se de riso com a leitura de uma cena de "Dom Quixote" em que o "cavaleiro da triste figura" se interroga se por baixo da aparência de Sancho Pança não se esconderá a sua Dulcineia. "E o Judeu não soube tirar dela um grande partido, produzindo uma cena bem cómica? Oh! Esta ideia devia ter ocorrido a Miguel Cervantes", exclamava Bocage.Obras de António José da Silva (editadas em quatro volumes pela Livraria Sá da Costa)1733: "Vida do Grande Dom Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança"1734: "Esopaida"1734: "Encantos de Medeia"1735: "Anfitrião"1736: "Labirinto de Creta"1737: "Variedades de Proteu"1737: "Guerras do Alecrim e da Manjerona"1738: "Precipício da Faetonte"São peças de teatro e libretos de óperas, ao mesmo tempo, pois muitos dos quadros eram cantados: 17 no "Dom Quixote"; 20 na "Esopaida"; 23 na "Medeia"; 21 no "Anfitrião"; 23 no "Labirinto"; 19 no "Proteu"; 20 nas "Guerras do Alecrim", e 24 no "Faetonte". Segundo Luís Freitas Branco, o compositor de "Proteu" foi António Teixeira (cf. "Obras Completas", prefaciadas por José Pereira Tavares, p. XXXI). Outros compositores, apresentados como tal por António José e citados como suas testemunhas abonatórias, foram o frade Agostinho Diogo Pantoja e o seu irmão Bruno de Almeida Pantoja.O "Dom Quixote" foi traduzido em francês por Ferdinad Denis: "Chefs d'Oeuvres des Théâtres Étrangers".- J. Lúcio de Azevedo: "Novas Epanáforas", Ed. Livraria Clássica, Lisboa, 1932 (o essencial do processo contextualizado na época inquisitorial)- Claude-Henri Frèches: "António José da Silva et l'Inquisition", Ed. Fundação Gulbenkian, Paris, 1982 (apresentação detalhada dos dois processos de que foi réu O Judeu)- Alberto Dines: "Vínculos do Fogo", Ed. Schwaraz, São Paulo, Brasil, 1992 (a monumental obra sobre os criptojudeus brasileiros e a repressão do Santo Ofício)- José Oliveira Barata: "António José da Silva - Criação e Realidade" (2 vol.), Ed. Publicações da Universidade de Coimbra, 1985 (uma longa tese de doutoramento onde se fala do comediógrafo, do seu tempo e das influências que recebeu da Espanha e da Itália)- Camilo Castelo Branco: "O Judeu" (2 vol.), Círculo dos Leitores, Lisboa, 1982 (uma ficção ultrapassada pela realidade, uma vez que Camilo desconhecia o processo; salva-se a biografia de Cavaleiro de Oliveira)Próximo artigo: Sousa Mendes, "o desobediente de Bordéus"

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