Rabelais, "o insolente"

É um lugar abençoado, próximo de Chinon, onde o ar é mais doce, o sol melífluo, a natureza fecunda, onde os vales desfilam, verdejantes e prósperos, salpicados de pequenos bosques e de campanários pontiagudos. Uma terra de delícias, cujas colinas orladas de vinhas dissimulam nos seus flancos caves trogloditas tão extensas como palácios. Nos últimos dias de Junho de 1543, um homem montado numa mula caminha perto destes campos. Transpira sob o seu barrete de clérigo e do seu gabão, uma vestimenta de mangas longas e abas assertoadas, inspirada nas túnicas orientais, que passou a usar depois de ter abandonado o hábito de monge para aprender medicina, há cerca de 15 anos. O fato é modesto mas asseado, o doutor Rabelais pregou a higiene num século que não a teve e vangloriou-se de ter, por conseguinte, feito baixar a mortalidade no Hospital de Lyon. Já não é jovem, mas suscita admiração, graças a uma dieta que lhe autoriza tudo - sobretudo o vinho -, mas que, para enganar a lenda, é seguida com "medidas justas". É magro, de estatura média, o cabelo grisalho, boca trocista sob uma barba bem aparada, os olhos castanhos, brilhantes, "magníficos", dizem os seus amigos - e as mulheres, que o apreciam...Presa à cintura transporta a sua fortuna: uma pequena forquilha, curiosidade trazida de Itália, alguns instrumentos, ervas e pós necessários para a sua profissão, um precioso boião de gengibre verde que lhe ofereceu o embaixador francês em Veneza, e uns óculos da última moda, dotados com lentes côncavas, sem os quais, bastante míope, não poderia ler, nem escrever, nem trabalhar. Dentro de uma arca, guardou os livros de que nunca se separou em 20 anos de peregrinações, os "Aforismos", de Hipócrates, que ele havia comentado publicamente no fim dos seus estudos médicos, "O Elogio da Loucura", de Erasmo, seu modelo e mestre de pensamento, "A Utopia", de Thomas More, Platão, Séneca, Lucien, mais a sulfurosa obra de um autor polaco desconhecido, Nicolau Copérnico, que acabava de ser publicada sem o conhecimento da Igreja e que circulava já no meio literário. Por quanto tempo conseguirá ele escapar à censura e à Inquisição? Mestre François suspira, está triste e, pela primeira vez, desencorajado. Em Março, os seus próprios livros haviam sido censurados pelo Parlamento, acusados de heresia, e, se agora regressa ao seu "pays de vaches", não é para ver o seu irmão mais velho, que herdou as propriedades da família, mas para se esconder, enquanto a tormenta não passa. Quem viria procurá-lo a Devinière, essa enorme granja onde o seu pai, advogado em Chinon, mandou construir, havia meio século, uma maternidade privada, longe dos miasmas da cidade? A pequena casa de um piso é graciosa, com o seu telhado de ardósia suavemente inclinado, a sua escada exterior protegida por um telheiro sobre colunas, as suas salas dotadas de grandes lareiras, pias e bancos dispostos nas espessas paredes onde se rasgam as janelas. A propriedade tem poços, enormes adegas onde se prensam os cachos de uvas, um singelo jardim no qual se alinham papoilas, mandrágoras, açafrão e camomila. Ali, ele cresceu, estudou, sonhou. Ali, ele pôde esquecer os "cérebros vazios", os "beatos falsos", os "santarrões", os "gigantes parasitas e processualistas" que o atormentam.Não é a primeira vez que os teólogos o condenam: um ano após a sua publicação, em 1532, "Pantagruel" desencadeou a ira da Sorbonne, a toda-poderosa faculdade parisiense que velava pelo respeito ao sistema. Acusado de obscenidade - além de apostasia -, livra-se justamente graças a um dos seus antigos condiscípulos, Jean du Bellay, diplomata e bispo de Paris, que o obriga a acompanhá-lo a Roma na condição de médico. Os ânimos acalmam-se, a benevolência de Francisco I e da sua irmã, Margarida de Navarra, permitem-lhe então retomar o seu lugar no Hospital de Lyon. O sucesso inesperado de "Pantagruel", escrito para se desforrar - mais de quatro mil exemplares vendidos -, tinha-lhe feito "crescer gigantes na cabeça", e ele regressou, dois anos mais tarde, com "La vie très horrifique du grand Gargantua, père de Pantagruel". Apesar do tom de troça pública, do excesso, as precauções tomadas no prefácio e a utilização de um pseudónimo, ele foi verdadeiramente transparente (Alcofribas Nasier, anagrama de François Rabelais), e o seu segundo romance, no qual satirizou os "sorbonnagres", os monges, o ensino escolástico, os juízes e a maior parte das instituições, ia-lhe custando muito caro. A obra surgiu pouco depois do eclodir da questão dos "placards", uma bravata de reformistas que havia feito o rei inclinar-se para o lado dos carrascos. As fogueiras acenderam-se em Paris e em Rouen, seis heréticos tiveram as suas línguas perfuradas, 200 foram desterrados.Dessa vez, Rabelais ficou a dever a sua salvação a uma fuga precipitada. Abandonando o hospital sem avisar ninguém, em Fevereiro de 1535, encontrou asilo junto do seu primeiro protector, Geoffroy d'Estissac, bispo do mosteiro beneditino de Maillezais, um erudito amante de jardins, que já o havia recolhido em 1524, quando ele não era mais do que um jovem monge revoltado com a falta de cultura dos dominicanos. Depois, volvido o perigo, tornou a reencontrar-se com Jean du Bellay, então de partida para Roma, que o acolheu de novo na sua companhia, protegido e feito regressar sob perdão. Rabelais obteve mesmo a absolvição do Papa pela sua apostasia e a autorização de exercer medicina e de reintegrar a ordem dos beneditinos sob o título de cónego leigo. Depois, viveu graças ao apoio dos seus protectores, ao êxito dos seus livros e aos seus talentos como médico - devidamente aclamados pelos seus contemporâneos, que o distinguiram entre os dez melhores praticantes do mundo. Percorreu a França e a Itália, perseguido por uma sede insaciável de conhecimento, de experiências. Em Roma, colheu plantas para Geoffroy d'Estissac - a quem enviou grãos de plantas para saladas, de melão, de feijões desconhecidos em França -, apaixonou-se pela arquitectura e pela arte antiga. Conheceu grande parte dos pensadores da época ou correspondeu-se com eles - Guillaume Budé, Erasmo, Clément Marot; viu Miguel Ângelo pintar o seu "Juízo Final" e Pierre Lescot construir o Louvre. Realizou a primeira autópsia pública em Lyon. Em Paris, ameaçada pelas tropas do Império, em 1536, assistiu aos preparativos do cerco, e em Aigues-Mortes, em 1538, à reconciliação de Francisco I e Carlos V; em Turim, ajudou o governador Guillaume du Bellay, irmão de Jean, a administrar o Piemonte. Por todo o lado, ele observou, dos bastidores, as intrigas e a política de então, tendo regalado os seus amigos e leitores à conta de incessantes altercações com as autoridades. É célebre. Mas solitário, sem um vintém e de vez em quando está sob ameaça. Até agora, o seu inveterado optimismo, a crença no homem e em Deus, a sua bulimia de cultura, o humor e a sua independência alimentam a sua energia, que todos os dias dirige para novas aventuras. Contudo, na Primavera de 1543, fica desamparado. Para os humanistas, a situação não é brilhante. Exortando o regresso aos princípios antigos, a responsabilidade do homem perante Deus, criticando a decadência da Igreja romana, as superstições, as peregrinações, o culto das relíquias, eles vão favorecer o aumento do número dos hereges, sem que, no entanto, se lhes juntem. Acreditam durante muito tempo que a Igreja romana pretende reformar-se do seu interior e vão trabalhar para uma reconciliação. Mas o malogro da dieta de Ratisbona põe fim a qualquer esperança de compromisso. Pior, a repressão torna-se mais pesada.Em 1542, o Papa reanimou a Inquisição romana, seguindo o exemplo de Espanha. Em França, Francisco I escolheu definitivamente a sua posição: Clément Marot e Robert Estienne, entre outros, tiveram direito a exilarem-se em Genebra, onde Calvino dirige a Reforma francesa. Erasmo foi morto, fiel à sua religião, fiel às suas ideias. Budé também, Thomas More havia sido decapitado por Henrique VIII, depois de ter recusado o cisma anglicano. Acusado de simpatias heréticas pelos católicos e de libertinagem pelos protestantes, Rabelais não sabia mais em quem se apoiar. Dois dos seus protectores, Geoffrey d'Estissac e Guillaume du Bellay, tinham sido mortos no início do ano. Estava zangado com o seu amigo, o editor Etienne Dolet, que tinha publicado uma versão não corrigida de "Gargântua", no momento em que ele tinha tomado a precaução de retirar os termos mais provocatórios. Inutilmente, pois a partir de então integrou a lista de autores proibidos. Na época, isto não era uma figura de estilo: o imprudente Dolet acabaria na fogueira por ter desafiado excessivamente os censores. A idade de ouro da Renascença acabara. Adivinhavam-se anos terríveis. O que pressentiria Rabelais? No leito de morte, Guillaume du Bellay tinha feito previsões que o deixaram perturbado. Ele, que sempre zombara dos astrólogos e dos adivinhos, que até publicara "pastiches" "proféticos" - "Este ano, os cegos apenas irão ver muito pouco, os surdos ouvirão mal, os ricos viverão um pouco melhor que os pobres" -, foi tomado pelas dúvidas e preparou um "verdadeiro" almanaque para o ano de 1543. A questão do casamento também o atormentava. Jamais respeitara os seus votos de castidade: "bon vivant", tinha mesmo tido em Paris dois filhos que foram legitimados pelo Papa e, em Lyon, um terceiro, falecido com tenra idade. Mas quis continuar a ser padre, e católico. Sonhava com Diógenes e com o estoicismo, que, traduzido para "pantagruelismo", se transmuta "numa certa alegria de espírito temperada de desprezo pelas coisas fortuitas". Sobre tudo isto ele tem vontade de fazer um terceira epopeia, na qual, a coberto do tom de gracejo, poderá expor as suas reflexões sobre o génio humano. O risco é enorme, mas ele irá corrê-lo, e fará o "Tiers Livre" (Terceiro Livro), esse "maravilhoso 'Tiers Livre'", escreverá Anatole France, "o mais rico, porventura o mais belo". O mais lido durante o século seguinte e que inspirará directamente Molière ("Le Mariage Forcé", "Casamento à Força") e Racine ("Les Plaideurs", "Os Litigantes"). Temendo o pior, Rabelais precaveu-se. Regressado miraculosamente à corte em 1545, graças ao apoio de amigos próximos do soberano doente - que ele tinha tratado -, obteve um privilégio real para a publicação e evitou atacar directamente o clero. Porém, a Sorbonne irá declarar o romance, assim que é editado, "recheado de diversas heresias", e Mestre François, uma vez mais, deverá fugir - para Metz desta vez, uma cidade do Império onde ele não receia as perseguições, depois de novo para Roma. Até à sua morte, em Paris, em 1553, envolta em circunstâncias misteriosas, não deixará de jogar às escondidas, de forma esgotante e perigosa, com as autoridades, alternando com provocações, bravatas e regresso às boas graças. Em Roma, escreve ainda o "Quart Livre" ("Quarto Livro"), espécie de odisseia burlesca sobre a busca da "divina garrafa". Aproveitou para fazer pontaria sobre os hábitos do Papado e também, com boa medida de precaução, sobre o "demoníaco Calvino, impostor de Genebra". Não teve tempo para acabar o seguinte, o "Quinto Livro", que será publicado sob o seu nome, dez anos após a sua morte, sem dúvida a partir das suas notas, por um admirador anónimo. É preciso ler Rabelais transcrito em linguagem moderna para apreciarmos a truculência, a imaginação, a ousadia (o arrojo), a inteligência, em suma, o génio, igual ao de Cervantes ou de Shakespeare. Cada página é uma mina. Mestre François, que falava italiano, latim, grego, hebraico, árabe e numerosos dialectos, que havia estudado teologia, direito, medicina, arquitectura, botânica, arqueologia, astronomia, que se entusiasmou com todas as descobertas de um século que foi rico nelas, enriqueceu o francês com cerca de 800 palavras, verbos ou adjectivos - álgebra, bastião, friso, escolta, ginástica, benéfico, indígena, frugal, zaragata, etc. - e de dezenas de expressões como "moutons de Panurge" ("macaco de imitação"), "prendre de la bouteille" (envelhecer) ou "o hábito não faz o monge", para citar apenas as mais "célebres" (uma outra das suas palavras).Ele inventou o anagrama, o trocadilho e o primeiro trocadilho de sílabas, "em Beaumont o Visconde"; o livro de bolso e o "pastiche". Além de Molière e Racine, inspirou os maiores, La Fontaine (copiosamente), Balzac, que o irá parodiar nos seus "Contos Jocosos" ("Contes Drolatiques"), Anatole France, que lhe consagrará uma biografia, Céline, Alfred Jarry, etc.Quanto a Gargantua, Pantagruel e Panurge, estes personagens fizeram a felicidade dos ilustradores, com Gustav Doré à cabeça, antes de ornar os "bistrots" e as tabernas de França. Por culpa de Ronsard, que lhe dedicou um malicioso epitáfio, é frequentemente comparado com seus heróis. Injustamente. Mestre François não foi um bobo obeso nem um monge devasso e bêbedo, mas um aventureiro do conhecimento, curioso, céptico, lúcido, que amava rir e disfarçava as suas críticas em farsas para evitar a fogueira. Um insolente. Rabelais manteve conscientemente um cerrado véu sobre a sua vida privada. Existem, por isso, poucas certezas. Terceiro filho de Antoine Rabelais, advogado e proprietário de terras, ele nasceu provavelmente em 1483 (ou 1494, segundo algumas fontes) perto de Chinon. Em 1510, noviço nos franciscanos de La Beaumette, próximo de Angers, conhece certamente os irmãos Jean e Guillaume du Bellay (tios de Joachim, o poeta). Em 1523, tornado monge dominicano no Convento de Pays-Saint-Martin, em Fontenay-le-Comte, entra no círculo dos eruditos. Magoado com a confiscação dos seus livros gregos, junta-se aos beneditinos de Maillezais, perto de Niort, onde o bispo humanista Geoffrey d'Etissac o nomeia preceptor do seu sobrinho. Cerca de 1528, despe o hábito e inicia estudos de Direito e Medicina em várias universidades, principalmente em Paris (onde tem dois filhos de uma viúva), e em Montepellier onde, em 1530, obtém o bacharelato de Medicina em seis semanas, em vez dos dois anos normais. Em 1532, encontramo-lo no Hospital de Lyon, no qual trabalhou até 1535. As publicações de "Pantagruel" primeiro e depois "Gargantua", apesar do enorme sucesso popular, obrigam-no a voltar a pôr-se em fuga para evitar a prisão. Fará longas estadas em Itália, no séquito dos irmãos du Bellay. Em 1536, o Papa liberta-o em parte dos seus votos monásticos - que o proibiam de fazer tratamentos através do ferro e do fogo. Nomeado cónego leigo no Convento de Saint-Maur, ele não reside lá, mas exerce ali medicina. Em 1543, com os seus dois livros oficialmente condenados, o seu rasto perde-se. Consegue publicar "Tiers Livre" em 1546. Colocado mais uma vez no Índex, refugia-se em Metz, e em seguida retoma a sua vida errante entre Roma, Lyon e Paris.Em 1551, os seus amigos conseguem obter-lhe a concessão de duas paróquias, em Meudon e em Sarthe, onde ele nunca chegará a exercer.Em 1552, após a edição do "Quarto Livro", corre o rumor de que fora preso. Morre em Paris, porventura das sequelas da sua detenção, em Março de 1553. 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