"Nós", novo filme do par Tomaz-Pereira, em Locarno

Eles estão outra vez no ecrã. Depois de "Noites", "Nós". Depois da história de amor no "underground" que fez deles um (razoavelmente) polémico par em 2000 e que foi vista no Festival de Veneza, onde recebeu o prémio para o Melhor Filme da Semana da Crítica, chega agora uma história de solidão e desencontro, ao vento e na cidade, que vai ser vista hoje no Festival de Locarno (secção Cineastas do Presente), Suíça.Eles são Cláudia Tomaz e João Pereira, a realizadora/intérprete e o protagonista de "Noites", filme de que eram também co-argumentistas. Eles são a realizadora (desta vez está só atrás da câmara) e o intérprete de "Nós", filme de que são também co-argumentistas.Ou seja: Cláudia e João são um par, na vida e no trabalho.A associação deu azo a incompreensões, mal-entendidos e alimentou algum "voyeurismo" por altura de "Noites", a história de amor entre uma rapariga e um toxicodependente. Porque a ficção permitia que se fizessem sobreposições com a chamada "vida real", em que se deu um encontro entre uma realizadora e alguém, um toxicodependente, que seria o actor do seu filme - ou porque "Noites" reservava para si o mistério, nunca desvendado, de poder ser, também, um documentário - houve quem se indignasse com o gesto de auto-ficção."O facto de eu fazer a personagem deu um valor diferente ao filme. Mas eu não estava preparada para as proporções que as coisas atingiram", começa por revelar Cláudia Tomaz. João Pereira junta-se ao diálogo: "Talvez tivéssemos consciência das proporções. Não estávamos era à espera que as coisas fossem legitimadas por isso. Eu interpreto uma personagem com um problema que era o mesmo que eu tinha na altura. Ora, a vertente mais explorada foi o facto de a realizadora ter dado corpo ao manifesto e atirar-se para o abismo da droga. Não era essa a nossa intenção quando escrevemos o argumento. Isso marcou-nos. Fiquei estigmatizado. As pessoas não conseguiram compreender que era ficção. E quando se fazia alusão à proximidade entre o documentário e a ficção partia-se do pressuposto de que a minha personagem não era uma personagem."O mistério só torna o filme (ainda hoje) perturbante. O seu romantismo também - e não por contar uma história de amor, mas por o amor ter estado na génese do filme e por cada plano exibir uma crença destemida que por facilidade temos de chamar "romântica". Era (continua a ser) um objecto singularíssimo, íntimo e frágil, com golpes de puro lirismo e simultaneamente destemido."Homem procura mulher para conversar"É dessa forma que Cláudia Tomaz, 30 anos, realizadora licenciada em 1995 em Ciências da Comunicação, no ramo de cinema, pela Universidade Nova de Lisboa, autora de curtas e médias metragens e assistente de realizadores como Pedro Costa, Paulo Rocha e José Álvaro Morais, volta a surgir na sua segunda longa-metragem, "Nós". Agora só como realizadora, e com uma estrutura de produção mais pesada, mais convencional, menos solitária como nos filmes ditos "normais". Não porque tenha querido afastar algum mal-entendido entre a realidade e a ficção, mas porque desta vez quis estar de fora a dirigir actores. E eles são João Pereira, como Francisco, um ex-presidiário que para iludir a solidão coloca um anúncio "homem procura mulher para conversar", e Alexandra Freudenthal (uma estreia) como Ângela, uma mulher tímida, de um mundo à parte - com casamento sufocante, paisagem suburbana e tudo - que acaba seduzida pela cidade e pelos seus labirintos.Como acontecia em "Noites", nesta história de um (des)encontro, é outra vez a mulher que sai do seu mundo, que se transcende e se violenta - que se metamorfoseia - perante a passividade do homem. E que faz isso tudo por causa dele. Por isso era preciso perguntar a Cláudia Tomaz se não há aqui, vinda já de "Noites", uma corrente sacrificial - não mortificante, mas desabrida; e se não há aqui, nesse desejo de ultrapassagem dos limites, algo próximo do auto-retrato.Cláudia começa a responder de forma tímida: "Esta personagem feminina vem de 1996, de uma coisa que escrevi, chamada 'Gestos', sobre a ideia da metamorfose, de alguém que pensa que os seus limites são muito curtos e que tem vontade de ultrapassá-los, de se recriar." Auto-retrato, insistimos? É João Pereira quem vem em nossa ajuda. "Acho que o que está em causa é talvez um ideal de vida da própria Cláudia. Algo de pessoal, que não está só ligado a ela como realizadora, mas como gesto de expressão."A dois é mais fácilJoão e Cláudia são mesmo um par no trabalho. As personagens vão surgindo, as ideias abstractas, e com elas os dois vão enchendo cadernos de notas. Ela vai fotografando espaços e vendo livros de fotografia (ver texto nestas páginas). Ele vai fazendo também de advogado do diabo. "Começamos por ter uma ideia vaga, imagens e impressões vagas que é preciso transcrever", ele conta. "É muito difícil traduzi-las, transcrevê-las de forma a que sejam possíveis de executar. Aproveitamos o facto de sermos dois. Nem sempre estamos de acordo. E muitas vezes fazemos de advogado do diabo um do outro. Tento contrariar a ideia dela até ao ponto de perceber que é de facto uma boa ideia."O caso dele é exemplar: descoberto por Cláudia Tomaz para o cinema como actor em "Noites" - "a responsabilidade foi da Cláudia, que supôs que eu estava apto a desempenhar a personagem" -, João Pereira entrou num universo desconhecido e mergulha nele com objectivos: "Tentar cumprir com a minha missão, trabalho de actor, e estar atento a tudo o que se passa no 'plateau', perguntando tudo - ou seja, para o meu trajecto como actor mas também direccionando para o universo da produção e realização."Escusado será dizer que o que eles fizeram em "Nós", frágil mas simultaneamente tenaz, continua a poder ser resumido assim: singular; aventureiro.

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