Palhaços portugueses sem fronteiras

No Verão de 2001, João Ricardo foi Faquir e Homem das Forças na Guatemala, entre centenas de crianças (e não só) que nunca tinham visto gente como ele, chegar assim, com um grande nariz vermelho e uma minúscula gravata, para as fazer rir. No seguimento dessa experiência, este actor e palhaço português de 42 anos tem agora em preparação projectos a pensar em Timor, África e eventualmente num regresso à Guatemala. Intervenções humanitárias que querem ir além dos espectáculos e serão o embrião de um grupo, uma versão portuguesa dos Palhaços Sem Fronteiras - organização não governamental sediada em Barcelona que organiza expedições internacionais a zonas de conflito, catástrofe natural ou pobreza endémica."A ideia é criar uma estrutura que possa fazer coisas em território nacional e também sair", diz João Ricardo. "Um projecto que passe por viver no terreno, ver o que podemos fazer pelo sítio onde estamos. Depois eventualmente contactar os Palhaços Sem Fronteiras, ou formar uma delegação cá."Entre os 15 elementos (contando com João Ricardo) que, neste momento, constituem a base de uma futura associação há palhaços (José Graça, que tem experiência de trabalho em bairros degradados portugueses, Kiki Almeida, Fernando Ascensão), actores (Gonçalo Ferreira, Ana Ramos, Helder Gamboa, também animador, Rita Martins, também professora, Rita Rodrigues, Sofia Cabrita), uma arquitecta (Gabriela Raposo), um músico (Filipe Valentim), um produtor (Nuno Pratas), uma figurinista e cenógrafa (Rafaela Mapril) e uma ex-trapezista e professora da Escola de Circo do Chapitô (Karley Aida).Para começar a sustentar esta iniciativa, João Ricardo já tem espectáculos agendados: "Fui convidado para fazer uma encenação sobre a vida de um circo degradado, no Teatro de Carnide, "A Última Pirueta", que vai estrear em Setembro. O dinheiro que ganharei vai ser para esse projecto [humanitário]. Em Novembro vou encenar 'Sonho de Uma Noite de Verão', para crianças, no D. Maria II e estou a pensar como é que o espectáculo pode ser dinamizado nesse sentido."O grupo está também a preparar dois espectáculos que reverterão completamente para o projecto. O primeiro vai chamar-se "Hai! A Alegria da Tristeza" e tem estreia apontada para Fevereiro-Março, num palco de Lisboa ainda por decidir. O segundo chegará por alturas do Euro 2004 e é concebido como "uma partida de futebol de palhaços".Outra ideia antiga de João Ricardo, que poderá ser recuperada com uma vertente humanitária, é a de uma Fábrica de Brincar. "Na Guatemala, as únicas crianças que têm 'brinquedos' são as que vivem na lixeira... Ainda não desisti deste projecto de oficinas de brinquedos." Formações, oficinas, "ateliers" são outras contribuições possíveis. "Quero estar nos sítios pelo menos um mês. Quando um espectáculo passa, o que é que deste às pessoas? Quinze minutos de riso? As oficinas, a formação, são formas de adensar isso." Escola de circoJoão Ricardo - integrou o elenco do filme "A Passagem da Noite", que esteve recentemente em exibição - foi um dos primeiros alunos da Escola de Circo do Chapitô, em Lisboa, há 20 anos. Tinha sido escuteiro, participara em movimentos católicos, queria fazer teatro e o circo era uma paixão de infância, de quando ia com a avó. E ia muito.Em 2000, foi fazer "ateliers" de Commedia dell'Arte em Itália para preparar o espectáculo "Delírios dell'Arte" do Teatro Meridional. Durante essa estadia, um professor sugeriu-lhe que aprofundasse a técnica de palhaço. Voltou, fez o espectáculo e, chegado o Inverno, partiu para um mês e meio de formação na Bont's International Clownschool, em Ibiza. Dessa experiência resultou um convite, feito pelo próprio director da escola, o holandês Eric de Bont, para participar num espectáculo de palhaços sobre futebol, num grande encontro em Ibiza conhecido como Trobada, que dura dois dias. "Havia várias bancas de organizações não governamentais na Trobada, entre as quais estava a dos Palhaços Sem Fronteiras. Mostraram-me o que tinham feito na Croácia e fiquei logo entusiasmado com a ideia."Regressou a Lisboa. No princípio do Verão de 2001, estava ele a representar "Merlin" com O Bando, telefona-lhe uma espanhola que tinha estado no curso da Bont, anunciando que ia para a Guatemala com os Palhaços Sem Fronteiras. "Disse-lhe que também ia. Tinha dois dias para tratar de tudo, vacinas, visto, viagem..." Foi, por um mês.Na GuatemalaAinda mal recuperada de trinta anos de guerra civil, golpes de estado, oscilações de poder entre militares e presidentes eleitos que não negam ser assassinos, a Guatemala é um país difícil de atravessar. Assaltos, homicídios, raptos, combates entre traficantes, bandos de jovens desempregados pelos baldios, sem futuro, mulheres e crianças abandonadas, pobreza extrema."A fome existe ali", diz João Ricardo. "Como existe o risco de morte, a venda de crianças. Tudo aquilo é uma caixa de pólvora prestes a rebentar." Com o seu quarto elemento português, os Palhaços sem Fronteiras integraram-se numa estrutura com assistentes sociais e terapeutas e, pontualmente, colaboraram com organizações religiosas. No Parque Central da Cidade da Guatemala cruzaram-se com os jovens que dormem ao relento, por vezes se prostituem e se combatem como tribos. "São as Maras, grupos de 20, 30 miúdos que se enfrentam por vinganças. Snifam cola, espalham cola na roupa e andam a snifar a roupa. Quando se vingam lançam fogo no corpo uns dos outros." Vivem marcados, morrem mortes violentas.João Ricardo e os seus companheiros chegavam a demorar 10 horas para fazer umas dezenas de quilómetros por estradas de montanha. Dormindo onde os acolhiam, comendo milho, ananás e bananas, estiveram em vales de imigração, em hospitais psiquiátricos, nos campos das Crianças Refugiadas do Mundo. O robusto português era o Homem das Forças, com uma corda esticada em cada braço, para as crianças puxarem, até um dos lados vencer. E fazia o número do Faquir, com uma corda puxada por um fio e um tapete de pregos. E ainda o número dos pratos - a ideia é parti-los. "A certa altura, eles entram por ali, todos muito felizes, invadem o palco, vão dançar connosco. Gente que nunca vê nada..." Um dos palhaços andava com andas. No dia seguinte, uma das crianças apareceu em cima de umas andas. Fê-las como pôde, do que pôde, e tentou. legenda: O grupo que constitui a base de uma futura associação tem já vários espectáculos agendados

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