Alexandre

%Texto Luísa Alves

Quando lhe perguntaram a quem deixava o seu reino, respondeu-lhes: "Ao melhor". [...] E ao lhe perguntarem quando lhe deviam prestar culto como deus, disse-lhes Alexandre: "Quando estiverem felizes". Foram estas as suas últimas palavras.Quintus Curtius Rufus, História de Alexandre, século I A. D.Quem era afinal Alexandre III da Macedónia, Comandante Supremo da Grécia, Faraó do Egipto, Senhor da Ásia, Grande Rei dos Persas, Imperador Helenístico? Quem era o homem de cuja visão global apenas agora, passados mais de 2300 anos, nos estamos a aproximar? Quem era aquele jovem tão incompreendido quanto amado, que liderava pelo exemplo e ambicionava ser um modelo para a posteridade? De quem eram os traços que deram forma à maioria das estátuas da antiguidade, e posteriormente à representação dos anjos e dos santos guerreiros da cristandade (sobretudo S. Miguel Arcanjo)? Quem era a figura que inspirou estadistas como César, Adriano, Carlos Magno, Frederico Barbarossa, Luís XIV, Napoleão, Cristina da Suécia, os Papas Alexandre VII e Paulo III, Afonso de Albuquerque, os Grão-Mogol e tantos outros reis asiáticos, e cujos feitos, em Os Lusíadas, Camões incitou D. Sebastião a superar (para nossa desgraça)? Que foi retratado na pintura por Rembrandt, Degas, Le Brun, Andy Warhol e na música por Mozart, Haendel, Metastasio, Bond e Iron Maiden, entre outros? Quem impulsionou a vontade humana, com os olhos postos no horizonte, prenunciando um novo relacionamento com o divino no hinduísmo, budismo, cristianismo e islamismo? De quem se reivindicam descendentes ainda hoje tantas gentes na Ásia Central, em todo o resto ignorantes do Ocidente, que sabem de cor as rimas populares das suas façanhas? Quem era o rei que subia aos céus, descia ao fundo dos mares, falava com as árvores, conhecia toda a terra, derrotava monstros e protegia a humanidade? Alex (o defensor) Andros (a humanidade): Alexandre Magno (ou O Grande), O Macedónio, Mega Alexandros, Iskandar, Sikander, Zil-Carnain, filho do deus Amon (porque órfão de um pai terreno que sempre o menosprezou); implacável na luta e magnânimo na vitória; apaixonado pela arte, pelo conhecimento, pela terra, o mar, as estrelas, os animais, os deuses, os heróis e os homens; corredor, caçador, botânico, enfermeiro, encantador de cavalos e planejador de cidades; casamenteiro das bodas do Ocidente com o Oriente, que tratava como súbditos aqueles que o eminente Aristóteles lhe recomendava que tratasse como escravos; espelho de príncipes durante séculos, mitificado como "Rei do Mundo", em quem se moldam outros mitos análogos, como no passado o britânico rei Artur e nos nossos dias o anglo-saxónico rei Aragorn, de O Senhor dos Anéis. Quantas facetas lhe foram sendo acrescentadas com o passar dos séculos? São milhares e milhares de livros à procura da resposta, para todos chegarem à mesma conclusão: cada vez que o mundo muda, recorre-se a Alexandre, o inultrapassável. No presente, veja-se o caso do Secretário da Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, ao encomendar um estudo sobre o império de Alexandre, antes do seu país avançar para a guerra.Tudo indica que a partir do próximo ano, Alexandre voltará a estar na moda, com um filme de Oliver Stone, projectado para 2004, outro de Baz Luhrmann (com Leonardo di caprio no protagonista) para 2005, uma série de televisão, para 2005-2006 e um monumento colossal a ser esculpido entre 2004 e 2010. O "script" de Stone parece ser tão polémico que levou já a que não lhe fosse autorizado filmar na Grécia. Bem ao gosto do realizador, deve ter conspiração, intriga, orgias, homossexualidade, talvez regicídio, afinal nada de novo em relação à velha imagem do "mau" Alexandre. No entanto, ainda há esperança: Colin Farrell, o actor/ protagonista, diz-se "entusiasmadíssimo" com o papel. Em relação ao monumento, há meses que se discute na Grécia o projecto da "Alexandros Foundation" da construção de um gigantesco busto de Alexandre Magno numa montanha da Macedónia. Por um lado, trata-se da homenagem mais do que merecida que a Grécia moderna presta ao mais importante dirigente da sua história; por outro, será também uma afirmação da identidade helénica, face à aproximação da Turquia em relação à União Europeia; por último, demonstrará cabalmente que a antiga Macedónia é o norte da Grécia e não a República da Macedónia jugoslava.Não obstante todos estes factores a favor, muitos põem em causa a estética de tal monumento, considerando-o uma total "piroseira". De facto, as poucas certezas que temos quanto à aparência de Alexandre apontam para cabelo encaracolado (talvez louro, talvez acobreado), pele clara (que ruborizava com facilidade) rosto arredondado, lábios carnudos, testa saliente e olhos enormes (provavelmente muito claros). Nenhum dos actores escolhidos para o papel tem todas estas características, nem o busto gigantesco tão pouco as ostenta. Mas existe uma razão, que se superioriza a todas estas, para que tal colosso não seja edificado, e essa é a resposta negativa do próprio homenageado: é que a ideia não é nova, segundo o que podemos ler nas obras de Plutarco, Vitrúvio e Estrabão. Aconteceu que o arquitecto Dinocrates apresentou ao rei o projecto de moldar o monte Atos com a sua figura, tendo na mão direita um rio a cair em cascata e na esquerda uma cidade para dez mil habitantes. Embora agradecendo e aplaudindo tanto engenho, a resposta do monarca foi que deixassem o monte em paz, pois já bastava que ele fosse o memorial da arrogância de um rei (o persa Xerxes), devido ao canal que este mandara construir quando invadira a Grécia. E acrescentou: "que eu seja recordado pelas marcas que deixarei nas montanhas da Ásia!".Tudo indica que a melhor forma de os gregos homenagearem Alexandre seria regressarem às tais montanhas asiáticas (nomeadamente ao Afeganistão) e aí procurarem a herança cultural única que lá se encontra soterrada, antes que se perca para sempre. No entanto, a diversidade esteve sempre ligada à representação de alguém tão primordial para a civilização quanto Alexandre. Todos os especialistas em Alexandre, ao longo dos tempos, nutrem pelo seu objecto de estudo mais do que o esperado interesse científico. "Todos o amamos", diz uma canção, traduzida em tantas línguas quantas as dos "amadores" (façam ou não disto a sua profissão). Este sentimento é também alimentado pela polémica e mistério que rodeiam três aspectos essenciais da memória de Alexandre: alcoolismo, sexo e morte.A morte Não existe um, mas dezenas de estudos sobre as hipóteses do que poderá ter provocado a morte de Alexandre. Continuo a inclinar-me para a malária como a mais provável. Não há nenhuma indicação fiável de que a súbita dor abdominal fosse no fígado e muito menos que tenha sido recorrente. Frente aos amotinados de Opis, Alexandre removeu as vestes para que todos pudessem ver as dezenas de cicatrizes que ostentava. No último ano de vida, é natural que se encontrasse muito debilitado física e psicologicamente, portanto, mais susceptível a infecções. No respeitante à morte, doenças e feridas do monarca, é essencial a obra monumental La critica medica nella Storia: Alessandro Magno, de Mario Bertolotti .O alcoolismo Filipe II era, de facto, um grande bebedor e disso se gabava. Aliás, foi ele, e não o filho, quem "perdeu as estribeiras" na festa do seu último casamento. Alexandre criticou publicamente o pai por "não se aguentar nas pernas" e partiu para o exílio com a mãe. Tinha 18 anos. O orador Demóstenes nutria por Filipe II um tal ódio de estimação, que se ocupou em denegrir toda a casa real da Macedónia nos vários volumes das suas célebres Filípicas. É bem possível que ele e outros ilustres atenienses estivessem implicados na tentativa de regicídio dos pagens, engendrada por Calístenes, sobrinho de Aristóteles. Não ocorreu, no entanto, nenhuma ordem de execução contra eles. Sabemos que Alexandre jurou fazer justiça com os "falsos sofistas", quando regressasse a Atenas. Nunca regressou, e os sofistas redobraram no esforço de lhe acabar com a reputação. O resultado é a imagem que se mantém na actualidade e que poderá surgir no filme de Oliver Stone. Diz-se que Alexandre morreu a beber. A verdade é outra, no entanto. Ele não morreu numa orgia, morreu a trabalhar: a preparar a invasão da Arábia e a cuidar da administração e saneamento da Babilónia. O famoso copo de sete litros (taça de Hércules) passava de mão em mão e servia para brindar, embora, ao cabo de vinte brindes, a quantidade de vinho ingerido não fosse desprezível. Homem do seu tempo, Alexandre bebia, de facto, mas provavelmente menos do que os seus companheiros. Estudioso culto, mas com pouca visão e discernimento, Demóstenes nunca entendeu Alexandre. Quando ele tinha nove anos, o orador visitou a Corte macedónia. Com a curiosidade do "civilizado" que inspecciona o "bárbaro", perguntou ao príncipe: "sabes contar até quantos?" Resposta de Alexandre: "Sei contar todas as ondas do mar!". Pobre Demóstenes, a descrever afoito este episódio nas suas obras, como prova da "arrogância ignorante de um fedelho sem educação". Não admira que ainda o apelidasse de "fedelho" na Assembleia de Atenas, quando Alexandre se tornou rei. Claro que o "fedelho" mostrou quem estava enganado, mas Demóstenes nunca desistiu da sua campanha anti-macedónia. Há muitas maneiras de contar uma história, e os "falsos sofistas" souberam sempre divulgar a pior versão dos actos de Alexandre. Resta-nos uma interrogação: terá Demóstenes entendido a posteriori que Alexandre lhe estava a dizer que quem sabe contar, sabe contar tudo?Diz-se que Alexandre se embebedou e deitou fogo ao palácio de Persépolis e assassinou o seu amigo Cleitus. Nestes casos, Dionísio, o deus do vinho, tem "as costas largas", como muitas vezes ocorre com as divindades. Cleitus era um homem condenado, que há muito perdera a confiança do rei. A acção de Alexandre não foi determinada pelo vinho, mas porque estava convencido que Cleitus o ia assassinar. Ao ver que o pobre general nem armado estava, a vergonha abateu-se implacavelmente sobre o perfeccionista Alexandre, que esteve três dias recolhido, sem receber ninguém. No caso do palácio, tudo estava preparado para a sua destruição, porque todos s pertences tinham sido retirados. Os gregos esperaram dois meses que os persas viessem receber Alexandre como rei. Dado que tal não sucedeu, nas vésperas da partida para leste, na continuação da campanha, a vingança final foi desferida contra o símbolo do poder persa. Convém não esquecer que a motivação da campanha pan-helénica era a reconquista das colónias gregas e a vingança por aquilo que as invasões persas haviam feito à Grécia. Foi uma mulher ateniense a primeira a atirar o archote, assim vingando os ultrajes sofridos pelas mulheres gregas. O cortejo dionisíaco que se seguiu foi pura manobra de diversão (aqui, literalmente, também para divertir). No entanto, a mensagem permaneceu nua e crua: os persas ou iam a bem, ou iam a mal!Quanto à mãe, embora não cabendo aqui entrar em explicações mais pormenorizadas sobre os rituais dionisíacos, é de sublinhar que o vinho é usado concentrado para induzir o êxtase e não para produzir longos períodos de embriaguez. Olympias nunca tocava em vinho fora dos rituais e detestava o comportamento do marido também nesse aspecto. Alcoólica não era, de certeza. Por outro lado, Filipe desconfiava de um culto religioso só para mulheres e pleno de mistérios. Terá sido o misticismo da mulher que o afastou dela e que pôs em causa a paternidade de Alexandre. Este foi, afinal, vítima do antagonismo dos pais face ao uso do vinho.O sexo Se há uma coisa em que todos os autores antigos estão de acordo, sejam apoiantes ou detractores, é no mistério à volta da vida sexual de Alexandre. Paixões na adolescência não se lhe conhecem. Sempre fugiu a casar-se jovem e os seus três casamentos são, sobretudo, alianças políticas. Ter-se-á apaixonado por Roxana, a primeira mulher? Por Barsine, a viúva de Memnon, o general grego mercenário dos persas? Pela belíssima cativa Campaspe, que generosamente "ofereceu" ao seu pintor favorito, Apelles, que por ela andava perdido de amores? Teria mesmo uma forte relação com o eunuco Bagoas, hipótese que proporcionou a Mary Renault o brilhante romance homossexual O Jovem Persa? Tinha mesmo como amante e confidente a prostituta favorita do general Ptolomeu, como surge em Taís de Atenas, de Ivan Efremov ( Slávia, Ed., 2002)? Encontrou mesmo a rainha das Amazonas, ou é apenas mais uma transposição das histórias do seu antepassado Aquiles para o "Super Aquiles", Alexandre? Muito se especula, mas nada existe de concreto em relação às famosas orgias. Os ditos excessos eram obra dos amigos, deslumbrados com o poder e, em várias ocasiões, fortemente criticados pelo rei: - " Se vos portais como os bárbaros, onde está a vossa superioridade? ". Leonatos importava areia fina do deserto da Líbia para o campo de treino da luta livre, Eumenes usava sandálias forradas a prata (!?) e quase todos competiam pela posse das casas, festas e mulheres mais soberbas. Ao inverso, havia em Alexandre uma sobriedade espartana a todos os níveis, sendo até criticado pela mãe por dar tudo aos outros. Era excessivo, sim, mas nas dádivas. A sua atitude face ao sexo é, no cômputo geral, de frieza ou autocontrolo. Recusava-se a olhar sequer para as mulheres do harém de Dario e até para a mulher deste, sua prisioneira e "uma das mais belas da Ásia", dizem os cronistas. As rainhas derrotadas (a de Caria e a mãe de Dario) tratavam-no como filho. Com a mãe terá também aprendido a respeitar as mulheres (a violação estava proibida aos seus soldados, que foram obrigados a casar com as cativas) e ouvia as mulheres idosas com especial respeito. A noite em que escapou ao assassinato pela mão dos pagens foi passada a fazer companhia a uma velha vidente, que lhe pediu para não se deitar antes do nascer do sol, pois previra um grande perigo. Quanto à pedofilia (um dos excessos mais ao gosto da maioria dos poderosos de então) está registado que se enfureceu e ficou muito ofendido quando lhe ofereceram uns tantos "lindos rapazinhos", no intuito de lhe agradar: - " Que viram vocês no meu comportamento para suporem que alguma vez me poderia interessar tal depravação? " Também nas atitudes sexuais causava estranheza, dado que o padrão da época era outro: a ostentação de proezas bissexuais era tanto maior quanto mais poderoso fosse o seu sujeito. Filipe II foi assassinado por um amante desprezado, por exemplo.Falta Hephestion. Amigo de infância, de todas as horas, aquele que o entendia tão bem que era por ele apresentado como: "também ele é Alexandre". Seria a sexualidade o mais importante nesta relação? Não, certamente. A dor da perda de Hephestion arrasou Alexandre como nenhuma outra coisa na sua existência. Sobreviveu-lhe oito meses. A isto chamamos Amor. Homossexual ou heterossexual, pouco importa.O filme de Baz Luhrmann irá basear-se na trilogia de Valerio Massimo Manfredi (Ed. Presença, 1999), que apresenta um Alexandre omnissexual, a quem nem sobra tempo para respirar. O realizador declarou que Alexandre era a primeira "rock-star" da história. Esperamos que a banda sonora esteja à altura. Esta visão será tão realista quanto a da série de TV do HBO, adaptando a trilogia de Mary Renault (Assírio e Alvim, 1993), ou a do mencionado projecto de Oliver Stone. Ao longo dos tempos, sempre existiu um Alexandre para cada criador. Essa é a grandeza do mito, em que se tornou a memória do homem. Por isso, positivas ou negativas, todas as visões ficcionais de Alexandre têm a legitimidade do tempo em que aparecem. Conta-se que, após ter contactado com sábios indianos, que lhe explicaram a teoria da reencarnação, Alexandre terá dito que, se um dia voltasse à terra, seria para ver o que tinham escrito acerca dele. Preocupava-o tanto a transmissão correcta dos factos, que, por certo, teria um desgosto. Porém, talvez só mesmo ele possa destrinçar a história e a ficção na sua biografia. Nós estamos limitados a perscrutar apenas. A substituição da verdade pelo mito foi o preço a pagar pela ascensão ao Olimpo.Luísa Alves é docente da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da U.N.L., doutoranda e investigadora da figura de Alexandre Magno.

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