Obra-prima de Proust tem nova tradução em português

O primeiro volume de "Em Busca do Tempo Perdido" - "Do Lado de Swann" -, do romancista francês Marcel Proust, foi ontem lançado no pequeno auditório da Culturgest, em Lisboa. É um verdadeiro acontecimento cultural: trata-se de uma das obras-primas da literatura de todos os tempos.Como sublinhou o escritor António Mega Ferreira, na apresentação do livro, "o romance de Proust não é um romance sobre o tempo, mas o próprio Tempo". "Não é a descrição de uma catedral gótica, mas a própria construção da catedral, porque o tempo não é como as águas do rio de Heraclito, que passam uma vez e não voltam a passar". Não. "É como um rio, a escrita de Proust, mas este transborda as margens e espraia-se pelos campos em redor", sublinhou Mega Ferreira.Se hoje ninguém tem dúvidas sobre a genialidade de "Em Busca do Tempo Perdido", não se imaginam os obstáculos por que Proust passou até ver a sua obra publicada. Nascido em 1871, em Auteuil, o escritor participa, aos 21 anos, na criação da revista "Le Banquet", onde saem o seus primeiros escritos, entre os quais alguns pastiches (quem não os gizou, num primeiro momento, de carreira?).A juventude mundana de Marcel é marcada por amores que manteve com mulheres e homens. Em 1905, a morte da mãe abala-o fortemente. Mas é 1908 o ano capital do que virá a ser "Em Busca do Tempo Perdido". Em Maio, no jornal "Le Figaro", escreve: "Tenho em mente/ um estudo sobre a nobreza/ um romance pariense/ um ensaio sobre Flaubert/ um ensaio sobre as Mulheres/ um ensaio sobre a Pederastia (não muito fácil de publicar)/ um estudo sobre vitrais, um estudo sobre pedras tumulares)/ um estudo sobre o romance". Em Dezembro, o romancista oscila entre dois caminhos - "O Tempo Perdido" e "O Tempo Encontrado" -, que se vão reunir no final, ao contrário dos caminhos de Borges, que para sempre se bifurcarão. Os famosos cadernos de "Em Busca do Tempo Perdido" acumulam-se na sua secretária ao som da música de Wagner e de "Pelléas et Mélissande", de Debussy.Em 1912, Proust leva o manuscrito do primeiro volume, depois de várias outras editoras lhe terem dado com a porta na cara, à Grasset. Parece incrível, mas é verdade: a editora publica-lhe a obra como livro de autor. Este não é um ano qualquer na vida de Proust: apaixona-se perdidamente pelo seu secretário Alfred Agostinelli, com quem passa a viver. Revê cinco vezes as provas de "Do Lado de Swann", que, enfim, vem a lume em Novembro.O Prémio Goncourt é-lhe atribuído, em 1919, com o segundo volume, "À Sombra das Raparigas em Flor". Até 18 de Setembro 1922, quando morre, Proust não pensa noutra coisa se não em procurar dar a conhecer todo o seu tempo do mundo e da escrita - que nele confluem num só universo. Passado quase um século, muitos escritores, alguns premiados com o Nobel, quando se lhes pergunta que livro levariam para a ilha deserta, não o escondem: "Em Busca do Tempo Perdido". Normalmente, nos inquéritos à Proust, de Verão... A edição da Relógio d'Água (que sairá mais tarde no Círculo de Leitores) teve já uma consequência: a Livros do Brasil, que tinha a obra em sete volumes com tradução do brasileiro Mário Quintana, quando os livros esgotarem, "vai deixar de a publicar", afirmou ao PÚBLICO o administrador daquela editora, António Sousa Pinto. As Publicações Europa-América também têm no seu catálogo a obra em sete tomos traduzidos por Maria Gabriela de Bragança. O PÚBLICO tentou ouvir uma reacção da editora sobre o impacte desta nova tradução nas vendas, mas todas as tentativas se revelaram infrutíferas."À Sombra das Raparigas em Flor", o segundo volume, sairá ainda em Setembro, estando prevista a publicação dos restantes cinco tomos até 2005. A última vez que a Gallimard publicou "Em Busca do Tempo Perdido", em 1999, o grande acontecimento do Salão do Livro de Paris, reuniu os sete volumes num imenso tijolo de 2408 páginas. Por que razão a Relógio d'Água não optou por esta opção? Francisco Vale, um editor que estava ontem bastante feliz, disse ao PÚBLICO que a solução era a mais prática e adequada: "O que não quer dizer que no futuro não se possa vir a editar num só volume". Até porque, dizia o tradutor Pedro Tamen, também visivelmente feliz, "Proust não deixou nenhuma indicação sobre a forma da publicação. Andou durante muito tempo às voltas para saber como o havia de fazer".Sobre a odisseia da tradução de Pedro Tamen (que certamente, ao invés do narrador, não foi para a cama muito cedo - é assim que o livro arranca), Mega Ferreira suspeita que o tradutor gostasse de sentir "o que o chapeleiro diz à Alice", de Lewis Carrol: "Se conhecesses o tempo tão bem como eu, não falarias em desperdício de tempo, como se fosse uma coisa. O Tempo é uma pessoa." Em Busca do Tempo Perdido - 1. Do Lado de SwannAutor: Marcel ProustEditor: Relógio d'ÁguaTradutor: Pedro Tamen446 págs., 17,60 euros.

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