CD-ROM reúne 29 primeiras edições de "Os Lusíadas"

Pela primeira vez, os estudiosos e leitores de Luís de Camões dispõem de um CD-ROM com 29 exemplares da primeira edição do poema épico "Os Lusíadas". Os 29 exemplares são publicados na íntegra numa edição fac-similada que junta livros de bibliotecas e colecções de oito países. Na sua investigação, que começou há 25 anos, o norte-americano David Jackson utilizou 34 exemplares completos, dos quais cinco não foram publicados na íntegra no CD-ROM porque, entre outras razões, os proprietários não deram autorização. De fora, estima Jackson, terão ficado alguns livros ainda por localizar, entre seis a doze exemplares, que podem estar nas mãos de coleccionadores particulares portugueses (ver caixa).O CD-ROM desta obra-prima da literatura renascentista europeia, que conta em verso a descoberta do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama, foi apresentado anteontem ao final de tarde em Lisboa na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD).Publicada em 1572, ainda em vida do poeta, a primeira edição - que terá tido entre 150 a 200 exemplares - sofreu várias alterações introduzidas pelo impressor lisboeta António Gonçalves, mas ao contrário do que muitos defendem, explicou o autor do CD-ROM, essas modificações não correspondem a duas edições distintas, mas a várias impressões da primeira edição. Para David Jackson, da Universidade de Yale (EUA), a leitura comparada indica que houve "uma única grande edição, com diferentes estágios de impressão".A sessão foi muito concorrida talvez por causa do "aspecto apimentado" e "controverso" da tese, notou Rui Machete, presidente da FLAD.Até agora, segundo o ensaísta e camoniano Vasco Graça Moura, nunca se tinha feito uma leitura comparada com um número tão elevado de exemplares. "É com certeza um trabalho que era preciso fazer para avançar com uma edição crítica. Porque é que este trabalho beneditino nunca foi feito? Quem é que o financiava e quem é que tinha tempo?" A fusão das duas edições não o surpreende, já a tinha aliás defendido.Os dois pelicanosO investigador americano explicou que, antes dele, já outros estudiosos "mencionaram mais de 2000 alterações, mas não há nenhuma lista disponível".As alterações que procurou não são tanto as que mudam o sentido do texto: "Encontrei, de facto, novas alterações, mas principalmente de natureza formal, como por exemplo erros nos títulos dos cantos, na paginação e no frontispício. Procurei estudar variantes que até agora não têm sido comentadas e comecei com um grupo de 33." O que lhe interessou sempre foi perceber como uma edição antiga era produzida - Guttenberg inventara a imprensa há 100 anos.Foi logo no século XVII, cerca de 100 anos depois da primeira edição, que o editor e comentador de Camões Manuel de Faria e Sousa notou que no frontispício da edição de 1572 havia alguns exemplares com a imagem do pelicano virada para o lado esquerdo do leitor e outros com o pássaro virado para o lado direito. Fê-lo não na sua famosa edição "Os Lusíadas Comentados", mas na que saiu postumamente em 1685. Faria e Sousa atribuiu as diferenças à existência de duas edições num só ano.Desde daí, as modificações - e a lista das diferenças - não pararam de aumentar e é geralmente aceite a existência de duas edições de "Os Lusíadas" em 1572. As alterações das edições são identificadas com "Ee" e "E", porque na edição do pelicano com a cabeça à esquerda o sétimo verso da primeira estrofe do canto I começa com "E entre gente remota edificaram", enquanto o outro começa com "Entre..." A diferença está na existência ou não da conjunção.Duas edições ou mito"Com o tempo, o mito das 'duas edições' fixou-se no imaginário português", afirmou David Jackson. Os estudiosos passaram a referir-se a ambas e a chamar à primeira edição "Ee" e à segunda "E". Hoje, a Biblioteca Nacional, por exemplo, considera que entre os seus quatro exemplares de 1572, três pertencem "à primeira edição 'Ee'" e o quarto "à segunda edição", a "E", diz Margarida Silva Pinto do Departamento de Reservados. Graça Moura, quando fez a sua edição na Imprensa Nacional-Casa da Moeda, decidiu comparar "linha a linha as edições dos dois pelicanos".Mas houve sempre três teses em confronto ou, como lhe chamou Jackson, o dilema que os estudiosos de "Os Lusíadas" têm que enfrentar. Uma diz que eram duas edições diferentes: uma primeira impressão, depois recomposta e impressa novamente em livro por António Gonçalves (ou outro impressor). Outra que eram dois estados de impressão do mesmo impressor: os erros foram detectados e corrigidos, num processo que deu origem a exemplares com erros em vários graus de correcção. E, por último, que era uma edição autêntica impressa por António Gonçalves e outra pirata feita mais tarde por um desconhecido.O escritor Aquilino Ribeiro (1885-1963) notou, por exemplo, que os exemplares "Ee" têm um texto mais cuidado (métrica e mitologia) - defendendo, por isso, que a edição "Ee", melhorada, seria a segunda -, mas o camoniano José Maria Rodrigues (1857-1942) sublinhou que a edição "E" tem mais correcções ortográficas. O poeta, defendeu Rodrigues, teria feito a primeira revisão, enquanto um tipógrafo sem cultura literária mas com rigor ortográfico executou a segunda.Um trabalho de Sherlock HomesDavid Jackson diz que o seu estudo demonstra que os dois pelicanos não correspondem a edições na íntegra, mas antes a estados de impressão com um momento de intensa correcção de erros. Outra conclusão é que a chamada "segunda edição" ("E"), com maior número de erros, foi impressa primeiro. Aquilino teria então razão e Rodrigues não."Um trabalho de Sherlock Homes, num caso em que foram duas as provas que levaram à solução: há quatro erros em todos os exemplares da impressão de 1572; e um exemplar, da British Library, tem o pelicano à esquerda no frontispício, mas a leitura 'E' e o texto do outro pelicano. Um caso complexo de miscigenação textual." Um desses erros técnicos é o canto VI do poema aparecer identificado como V. E porquê tantos erros? "Editar 'Os Lusíadas' era um trabalho colossal. Quatrocentas páginas por cada livro! Bastava alguém gritar ao compositor de tipo: 'José muda isto.' Ele distraía-se e entrava um erro. Havia um compositor de tipo que era péssimo e que introduziu imensos erros entres as páginas 106 e 126."Novas siglasMas Jackson disse também que as siglas tradicionais - as famosas "E" e "Ee" - devem deixar de ser utilizadas, "uma vez que não se trata de elementos definitivos quanto à separação das famílias". O investigador propôs antes as siglas "octovo/octavo» (identifica o canto VIII na página 128) e "149/145" (uma numeração errada para a verdadeira página 154).Como o impressor António Gonçalves tentou corrigir os erros, Jackson construiu uma cronologia para os 29 exemplares. "Houve dez momentos de correcção", o que deu origem a dez grupos diferentes de livros. A sequência proposta começa com seis exemplares "E" e acaba com 17 exemplares "Ee" quase idênticos. Nos dez grupos, há cinco constituídos por um único exemplar.O próximo passo, com quase todos os exemplares na mão, "vai ser um congresso-workshop para comparar linha por linha, para saber mais exactamente em que ordem a edição foi alterada". O local deverá ser Yale, dentro de dois anos. "O resultado pode ser um texto mais definitivo, mas haverá sempre a questão de saber qual foi a sequência, porque novos erros foram introduzidos. Eu não considero que haja leituras erradas ou certas de 'Os Lusíadas'. Depende do ponto do vista do editor de hoje. Eles têm de escolher entre as várias versões. O CD-ROM permite ao leitor envolver-se na escolha, fazer em casa o que o editor moderno fez até aqui." Mas o objectivo do CD-ROM, disse no final da conferência, "é democratizar a primeira edição para o trabalho dos estudiosos".O CD-ROM estará à venda, dentro de 15 dias, na livraria Buchholz, em Lisboa.

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