400 cadeiras para a história do design português

É um livro que pesa quase tanto como uma cadeira. "O limite era a qualidade das peças, por isso é que saiu este livro enorme", diz Rui Afonso Santos, um dos autores da obra "Cadeiras Portuguesas Contemporâneas", agora editada pela Asa.São mais de 400 cadeiras recolhidas num inventário inédito na história da arte portuguesa, num livro feito em parceria por José Manuel das Neves e Rui Afonso Santos. É o mais completo levantamento feito até hoje na área do design do mobiliário em Portugal - o chamado design de equipamento. É também uma obra bilingue, em português e inglês, com o objectivo de internacionalizar o design nacional. Rui Afonso Santos, historiador do design, diz que a história da cadeira portuguesa contemporânea serve também para contar a história do design português. "A cadeira é o móvel mais icónico que existe. É um móvel muito sensível. De todas as peças de mobiliário, é a que melhor retrata um país. A cadeira é um barómetro de quem a produz: reflecte o poder, as práticas sociais, a cultura, a tecnologia, a inovação e, claro, o design".A primeira cadeira incluída no livro foi feita em 1934 pelo arquitecto do Porto Cassiano Barbosa (1911-1998), em madeira de castanho e tecido. Desenhada para a sua própria casa, na altura do seu casamento, é "formalmente devedora dos modelos modernistas dos anos 30", escreve-se no texto assinado por Rui Afonso Santos, que em mais de 100 páginas faz uma história do design português do século XIX à actualidade. As outras 400 páginas funcionam como um catálogo, organizado pela data de nascimento dos autores (falta um indíce remissivo). Cada autor vê ordenadas as suas obras por ordem cronológica, sendo-lhe dedicado um breve currículo. Cada peça tem ainda uma ficha com o nome da cadeira, material, data, dimensões e produtor.O inventário das cadeiras contemporâneas portuguesas não é estritamente dedicado à cadeira. Há excepções: alguns bancos, espreguiçadeiras e poltronas. Aliás, a ideia original do livro partiu do editor José Manuel das Neves e incluía mesmo todo o mobiliário produzido por arquitectos. Mas o editor, que se tem dedicado à investigação e divulgação da arquitectura portuguesa contemporânea, percebeu que esse era um mundo demasiado vasto para apenas um livro: "Primeiro, percebi que os arquitectos tinham desenhado muito mobiliário e quis recolher tudo num livro. Depois, a quantidade era tanta, que escolhi o móvel de assento, a cadeira". O que é uma cadeira?Como explica Rui Afonso Santos, este é um livro dedicado ao sentar individual. Mas o que é exactamente uma cadeira? "A cadeira é um móvel de assento que permite, simplesmente, o acto de sentar. Permite apoiar o corpo nas nádegas e membros posteriores, bem como o encosto dorsal e, por vezes, o apoio dos braços e da nuca". A primeira cadeira, diz o historiador do design, terá sido uma pedra ou um tronco de árvore, talvez revestidos a peles de animais: "A sociedade suméria (actual Iraque) deixou-nos representações de cadeiras de aparato nos túmulos reais de Ur. No túmulo de Tutankamon (Egipto) surgiram espreguiçadeiras em madeira dourada e um trono de braços em madeira revestida a prata com aplicações de esmaltes e pedraria". Como objecto ligado à representação do poder, o trono é um dos móveis de assento que se encontra na Europa na Idade Média. O rei ou o príncipe sentavam-se numa cadeira, mas esse é um objecto raro porque os bancos e as almofadas são os assentos mais usados. "As cadeiras só se vão democratizar no século XIX, quando a cadeira Thonet é produzida em massa. A máquina a vapor permite vergar a quente a madeira, produzindo-se muitas cadeiras por dia e tornando-as acessíveis. Cá são copiadas e produzidas pelo menos desde 1880 nas mercenarias de Lisboa". Em Portugal, "apesar da verdadeira industrialização só ter chegado com os planos de fomento dos anos 50/60, o design é muito anterior, ao contrário do que as pessoas pensam". Não chegou só nos anos 80, "a chamada década do design, do 'boom' do design', mas começou muito antes". "Apesar do design também demonstrar as carências do meio português - a ausência de cultura artística no ensino e no público, a falta de uma burguesia esclarecida empreendedora e, sobretudo, a falta de industrialização -, já se pode falar de desenho de mobiliário em 1900. O arquitecto Miguel Ventura Terra (1866-1919) desenhou todo o mobiliário para as cortes, enquanto o seu colaborador Marques da Silva (1869-1947) fez o mesmo para o Tribunal do Comércio da Bolsa do Porto. O Raúl Lino, no princípio do século, já tem preocupações de design, com se vê no mobiliário infantil produzido para a Escola João de Deus e nos exemplares de arte nova que apresentou na Exposição Universal de Paris 1900", nota Rui Afonso Santos. Mas a primeira cadeira feita em série é a do caricaturista Leal da Câmara, produzida em 1911 pelos móveis Olaio. "É anti-historicista e anti-eclética, mostra uma influência do secessionismo vienense, com as suas linhas rectas e os seus motivos geométricos recortados". Nos anos 30, assiste-se à divulgação do mobiliário em tubo metálico cromado, cujos exemplares mais célebres são as cadeiras de assento suspenso de Mart Stam e Marcel Breuer. "Elas são feitas em 1927-28 e aparecem logo cópias em Portugal nos anos 30. Tirando as feitas por Franz Torka, as outras são todas copiadas dos catálogos alemães e franceses", diz o historiador. "Em Portugal, as primeiras linhas continuadas de mobiliário doméstico com identidade própria foram produzidas na década de 50 pela Altamira e desenhadas pelo designer Cruz de Carvalho. Há uma preocupação em satisfazer o mercado nacional e de utilizar os recursos nacionais. Antes disso, há a célebre cadeira para cafés e esplanadas, que ainda hoje é produzida, que Gonçalo Rodrigues dos Santos criou empiricamente na sua serralharia em Algés".Entre as 400 cadeiras incluídas no livro, 160 foram feitas por arquitectos, segundo as contas de José Manuel das Neves. "O papel do arquitecto, e também de alguns artistas, é decisivo ao longo do século XX. Só havia à venda historicismos. São eles que fazem as cadeiras e, num meio adverso, tinham que fazer verdadeiros manifestos, demonstrar a qualidade do seu trabalho". Actualmente, no entanto, quando já está a trabalhar a terceira gerações de designers, "os arquitectos já não precisam de desenhar cadeiras e, com a maturidade que os designers atingiram, devia haver uma maior cumplicidade entre as duas profissões".O designer Daciano da Costa, um pioneiro da disciplina e um dos primeiros a abrir um atelier de design em 1959, diz que "é muito bom ter aparecido um livro com estas ambições cá na terra, feito por um historiador do design e que não é apenas uma lista telefónica". Pela primeira vez, "aparecem bem documentados designers quase esquecidos como José Espinho, um verdadeiro designer industrial". Uma coisa, avança Daciano da Costa, "é a produção de um pequeno número de cadeiras, outra são as grandes séries para serem produzidas pela fábrica Olaio".O designer Pedro Silva Dias, autor de algumas cadeiras presentes no catálogo e que está representado no Museu do Design, reconhece também que este é o primeiro levantamento exaustivo dedicado às cadeiras portuguesas contemporâneas e que, só isso, faz do livro "uma obra muito simpática". Algumas ausências é sempre possível identificar, mas o que faz sentido discutir é antes as presenças menos esperadas: "Falta uma ou duas cadeiras, como uma do arquitecto Cristino da Silva que eu tenho. Era impossível não faltar nenhuma. Há também algumas mais actuais que podiam não estar, mas é sempre um risco pôr coisas mais recentes e que depois podem não ser fundamentais. As do Taveira, por exemplo, são discutíveis, mas, de facto, marcaram o início dos anos 80".

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