Carta a Niemeyer entregue 56 anos depois

Em 1947, ainda Nuno Teotónio Pereira estava a estudar arquitectura, um tio trouxe-lhe da África do Sul o livro "Brazil Builds", que foi tudo menos um presente qualquer. O livro, das primeiras cópias a chegar a Portugal, tornou-se uma inspiração para a célebre geração dos primeiros arquitectos modernos portugueses e fez escola.O impacto foi tão grande que o jovem arquitecto escreveu a Oscar Niemeyer, já com 40 anos e discípulo do movimento moderno lançado por Le Corbusier, a pedir "o grande favor de fornecer" algumas informações sobre uma igreja que construíra no Brasil. A carta, porém, nunca chegou ao destino e foi devolvida cinco meses depois. "Arquivei-a e nunca mais pensei no assunto", diz Teotónio Pereira.Mas há dois dias a Ordem dos Arquitectos portugueses conseguiu - 56 anos depois - entregar a carta original a Niemeyer. "A carta é o símbolo de uma cumplicidade muita antiga entre as grandes referências da arquitectura portuguesa e brasileira", diz Helena Roseta, bastonária da Ordem, que organizou a entrega.Oscar Niemeyer, 96 anos, foi o homenageado do Congresso anual do Instituto dos Arquitectos Brasileiros, que termina amanhã no Rio de Janeiro (e em cuja abertura a carta foi entregue por Manuel Vicente, vice-presidente da Ordem portuguesa), e Nuno Teotónio Pereira, 81 anos, é o homenageado do Ano Nacional de Arquitectura (ANA03) que a ordem está a celebrar. "E são duas arquitecturas que estamos agora a tentar reaproximar", diz Roseta.A igreja de PampulhaA carta foi enviada dez anos antes de Niemeyer se tornar o grande arquitecto de Brasília (o concurso foi ganho por Lúcio Costa em 1956 e Niemeyer passou a chefiar a construção em 1957). Antes, portanto, do palácio presidencial de Brasília, de 1958, uma das suas obras mais emblemáticas, da catedral ou da sua casa no Rio.Em 1947, o que atraiu Teotónio Pereira foi a igreja de São Francisco em Pampulha, que Niemeyer construíra nos arredores de Belo Horizonte em 1942-43 (e que fora o seu primeiro projecto individual). Em pleno Estado Novo e 50 anos antes da Internet, a informação era escassa. "Julgo ser esta [a igreja de Pampulha] uma das últimas obras de V., e só tenho notícias dela através duma ligeira referência de L'Architecture d'Aujourd'hui e de uma pequena fotografia publicada em Pencil Points", escreve Teotónio Pereira na carta extraviada. Pede por isso plantas, alçados e cortes, "fotográficos ou de qualquer outra espécie"."Eu estava a fazer o projecto da Igreja das Águas", contou ontem Teotónio Pereira, e "queria saber mais sobre a igreja de Niemeyer". Não chegou a saber, mas a Igreja das Águas, em Penamacor (1949-57), "tem uma atitude muito moderna, embora sem repetir de forma mimética a arquitectura de Niemeyer", diz Ana Tostões, crítica de arquitectura e comissária da que será a grande exposição do ANA03, dedicada, precisamente, a Nuno Teotónio Pereira (a retrospectiva inaugura em Guimarães em Novembro e segue depois para Lisboa).A abertura à vanguarda1947 é precisamente o momento em que, pela primeira vez em Portugal, uma nova geração de arquitectos reconhece a importância do movimento moderno e das ideias de vanguarda internacionais. "A abertura dos arquitectos portugueses ao estrangeiro dá-se depois da guerra - que é quando descobrem Le Corbusier", diz Michel Toussaint, critico de arquitectura e professor na Faculdade de Arquitectura de Lisboa.Na carta a Niemeyer, aliás, o jovem Teotónio Pereira, então com 25 anos, refere-se a Le Corbusier como "nosso mestre". Dois anos antes, fora o primeiro a traduzir para português a Carta de Atenas, a bíblia do movimento moderno saída do Congresso Internacional de Arquitectura Moderna de 1933.Mas para Ana Tostões a carta é mais do que a afirmação dos princípios de Corbusier (que em 1936 fora consultor do projecto do Ministério da Educação no Rio de Janeiro no qual Niemeyer trabalhara). "A carta confirma que, nessa altura, a arquitectura brasileira passou a ser uma referência para os jovens arquitectos portugueses", diz Tostões. "Essa referência, para a chamada geração do congresso de 1948, esteve ligada ao fenómeno do livro 'Brazil Builds'", que o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA) editara em 1943.A nova arquitectura brasileira, escreve Teotónio Pereira, é um "estímulo poderoso para a nossa própria luta em prol de uma arquitectura nacional digna e genuína"; "contemplamos com orgulho de irmãos a marcha irresistível e triunfal do vosso movimento renovador"."Vivia-se a euforia dos anos do pós-guerra e havia uma forte vontade de mudar o mundo", diz Tostões. "O livro 'Brazil Builds' marcou muito Portugal" onde, desde os anos 30, a arquitectura seguia uma linha tradicional muito marcada. Nos anos 40, diz Teotónio Pereira, "as Câmaras Municipais obrigavam os arquitectos a seguirem a chamada 'arquitectura tradicional portuguesa', a copiar as coisas antigas".A importância do trabalho de Teotónio Pereira, diz Tostões, é "a luta pela afirmação de uma arquitectura moderna". Integrado numa geração que "rejeitou a ideia do Estado Novo de que havia um estilo português como matriz fixa", diz Michel Toussaint.Durante anos, os dois mestres nunca se viram. Até 1996, quando Niemeyer veio a Lisboa à cerimónia de criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

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