Torne-se perito

Líderes xiitas acreditam que o povo os vai querer a dominarem governo

São duas das três mais importantes personalidades do poder religioso xiita: o ayatollah Ali Sistani e o ayatollah Mohamad Said al-Hakim, de 73 e 63 anos respectivamente. Não aceitam ser fotografados e muito menos filmados. Mas aceitaram falar ao PÚBLICO. Só que apenas através dos filhos, Said e Hussain, respectivamente. Ambos os ayatollahs se mantém retirados, quase na clandestinidade, em protesto contra o assassinato na mesquita de Najaf, há uma semana, do imã Abdulah al-Khoei, acabado de chegar dos EUA. Entrevistas separadas, concedidas anteontem e ontem em salas modestas de duas casas longe uma da outra. Foram fundidas quando coincidentes e com o nome do autor assinalado quando (ligeiramente) divergentes. HUSSAIN AL-HAKIM - Os xiitas são 75 por cento da população iraquiana. Anteriormente a Saddam Hussein, relacionavam-se com todas as religiões de forma correcta e civilizada e havia muitos encontros inter-religiosos. Testemunhei tudo isto eu próprio, nos últimos dias do meu avô (ayatollah Musa al-Hakim). Quando ele adoeceu, vieram aqui a Najaf muitos cristãos e curdos visitá-lo. Foi o meu avô quem proibiu que se combatessem os curdos. Pois bem, apesar dos xiitas serem a maioria no país, nunca tiveram nenhum papel no governo. Mesmo antes de Saddam, apesar de toda a gente saber o papel que tiveram no combate contra os ingleses no início do século XX.P - Querem ter a maioria no governo?R - Se o futuro do Iraque for mudado pelos iraquianos é natural que tenham esse papel. Mas gostaria de sublinhar o tipo de papel que pretendemos. Os "marjeyah" [palavra que o tradutor do PÚBLICO entende dever ser traduzida por "referências"] religiosos, devido à popularidade e aceitação que têm junto dos xiitas, não procuram um papel político. A "referência" religiosa é um líder religioso. O seu papel é espiritual, reformador e social.P - Insisto: pretendem ou não estar em maioria no governo?R - Isso será decidido pelo povo. Dele e dos partidos. Se estiver nas mãos do povo decidir, seremos maioria, certamente.P - Falou em função reformadora. Quais são as reformas mais necessárias no Iraque de hoje?R - Respeito pelo ser humano; pelas ideias do outro; preservação da bondade por todos os meios possíveis. P - Qual será a vossa referência política, o Irão?Hakim - A questão não foi posta ainda sobre a mesa. Ainda estamos no início do caminho. Nem pusemos sequer os pés na estrada.Sistani - Aqui a referência só dará opiniões e conselhos. Não interferirá nem governará, apenas apontará ideias e sugerirá directivas.P - Mas qual será o modelo nos grandes princípios? Será democrático tipo ocidental?Hakim - As sociedades são diferentes. Cada uma delas tem as suas especificidades.Sistani - Não queremos discutir isso agora.P - Serão consentidos partidos da oposição?R - Queremos ouvir os outros. Aceitamos todas as discussões, desde que se baseiem na lógica e na razão.P - Haverá liberdade de imprensa e de manifestação?R - Serão consentidas outras formas de expressão para além da xiita. O culto religioso deve ser livre. Mas as linhas mestras devem ser preservadas.P - Para entender melhor o vosso pensamento sobre esta matéria: quais serão as grandes diferenças entre o regime de Saddam e o novo?R - Não posso falar em nome do novo governo. Acredito que o povo iraquiano ultrapassará as dificuldades. É diligente, acredita em Deus e tem uma visão do futuro.P - Quais os principais defeitos do regime de Saddam?Hakim - O meu pai, a referência, esteve preso sem julgamento com outras 60 figuras religiosas, algumas muito importantes, enquanto 18 foram assassinadas. Há 18 membros da nossa família desaparecidos desde 1991. E dezenas de milhar de outros xiitas que sofreram repressões semelhantes.P - Não haverá portanto nem prisões políticas nem assassinatos no novo regime?R - A vida humana é um valor que temos obrigação de preservar.P - Há dias na mesquita aqui de Najaf foi assassinado o imã Abdul al-Khoei. Quer comentar?R - Foi uma grande, grande tragédia, cometer um crime destes dentro de uma mesquita. Indescritível. Foi um problema de falta de segurança.P - Ele tinha chegado do exílio e apoiara a intervenção militar dos EUA. Não terá sido por causa disso?R - Como referência não convidámos os EUA a virem. Mas a vontade do povo ficou clara em 1991 [quando se revoltou contra Saddam na sequência da derrota iraquiana no Kuwait]. Se Abdul al-Khoei tinha uma posição sobre essa matéria, a nossa era diferente da dele. Isso porém não justificava a sua morte, que aliás não tem nada a ver com os EUA. Foi uma falha de segurança.P - Os líderes xiitas mantêm algum relacionamento aqui em Najf com os militares norte-americanos?R - Não temos nada a ver com eles. Nenhum contacto. Desejamos que essa presença não cause fricções com o povo. Não queremos ter problemas com eles.P - Aceitarão um governo provisório nomeado pelos EUA?Hakim - Isso será um problema deles.Sistani - O governo deve ser constituído por iraquianos.P - Tem havido muitas críticas aos EUA por causa das pilhagens no país. Hoje mesmo li uma "fatwa" em que o ayatollah Sistani dizia que pilhar é um acto contra o Corão. Como é que se podem criticar os EUA de actos que os próprios líderes religiosos não conseguem evitar? R - É responsabilidade dos EUA garantir a paz, nos termos da Convenção de Genebra. Bem como a vida quotidiana e a dignidade das pessoas. Os americanos tinham a obrigação de defender o Museu Nacional do Iraque [em Bagdad] e outras instalações públicas. P - É verdade que não aceitam a vinda das Nações Unidas? Porquê?R - Porque não vemos nada de positivo que possa vir delas. Dos EUA tivemos a que está à vista. Da ONU não vimos qualquer capacidade para impedir os EUA de actuarem como actuaram.P - Tem ideia de algum nome entre as personalidades locais ou os oposicionistas vindos do estrangeiro que possa vir a ser Presidente do Iraque?Hakim - Não é coisa em que pense.Sistani - Não tenho comentários a fazer.R - Qual o significado da peregrinação de milhares e milhares de xiitas que caminham neste momento pelas estradas do sul país em direcção a Kerbala?R - Peregrinação só a Meca. Esta é uma visita ao túmulo do imã Hussein. Exprime uma grande adesão ao imã e aos princípios que ele defendeu, ao dizer que ia para Kerbala procurar a reforma social.Durante os primeiros tempos de Saddam também se realizavam estas procissões. E apesar de terem sido proibidas mais tarde, as pessoas continuaram a ir, ainda que em menor número. A posição religiosa sobre ela é a seguinte: é bom que se faça, mas não é um dever.P - Vai participar nela?Hakim - Insha'la. Mas não podemos ir a pé devido aos afazeres do momento.Sistani - A participação é uma questão pessoal. Não iremos.

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