Torne-se perito

"Saddam é inimigo de Deus"

Que bonita foi a tua festa, Bagdad. Que bonito foi ver o teu povo na rua, por fim liberto do medo, por fim liberto da carapaça do regime, por fim capaz de expressar abertamente os seus sentimentos.E que importante foi ver gente celebrando com folhas de palmeira, queimando retratos de Saddam, oferecendo flores e cigarros aos soldados americanos, gritando "Saddam é inimigo de Deus". Que emoção quando a estátua caiu e o povo a espezinhou, lhe bateu com os chinelos no rosto de bronze rachado, em sinal de supremo insulto e desprezo. Já repararam como tudo isto foi importante para a "rua árabe"? Já notaram como isso reforça as palavras, proferidas no fim-de-semana pelo mais importante líder espiritual dos muçulmanos sunitas, o xeique Muhammad Tantawi, imã da mesquita de Al-Azhar, no Cairo, em que acusava de "terrorista" o regime de Saddam? Já repararam na extraordinária janela de oportunidade que se abre?Confesso que é com emoção que escrevo estas linhas. As imagens de festa nas ruas de Bagdad, de Bassorá, de Arbil, lembraram-me o inesquecível 5 de Outubro de Belgrado, o dia em que um levantamento popular derrubou Milosevic, e a festa que eu próprio vivi, há quase 30 anos, num certo 25 de Abril. Lembram-se? Lembram-se como dias antes - por medo? por incapacidade de discordar? - Marcelo Caetano tinha sido aplaudido num estádio de futebol repleto, para dias depois, soltas as amarras, o povo - o mesmo povo - encher o Largo do Carmo pronto a linchá-lo? Lembram-se como diziam que não estávamos preparados para a democracia? Ou que nunca seríamos uma "democracia burguesa"?Talvez não se lembrem, mas eu lembro-me de tudo. E também de todas as dificuldades que vivemos a seguir. Por isso, se ontem não pude evitar uma lágrima furtiva - a mesma lágrima furtiva que nunca reprimo quando revejo a cena da Marselhesa no "Casablanca", ou a imagem de Francisco Sousa Tavares, no Largo do Carmo, falando à multidão que cercava o quartel onde se refugiara Marcelo Caetano -, não deixo por isso de saber que a batalha não está terminada, que são imensas as dificuldades e as incógnitas que ainda pela frente. Há gente pobre a saquear as mansões obscenamente ostentatórias dos dignatários do regime? Compreende-se, mas alguma ordem tem de voltar com urgência às ruas de Bagdad. Há ainda bolsas de resistência e Saddam continua vivo e fugitivo? É possível, mas então há que persegui-lo, de preferência capturá-lo e julgá-lo, e pacificar o país. São sobretudo os xiitas e os curdos que estão a festejar? São, mas também são muitos os sunitas que se lhes reuniram nas ruas da mais antiga cidade do Mundo.Rapidamente vai ter de se encontrar quem tome conta do poder, mais rapidamente de que mesmo os mais optimistas se atreviam a pensar. E, neste momento, só há dois países com autoridade moral e forças no terreno para liderarem o processo: os Estados Unidos e o Reino Unido. Devem fazê-lo - e prometem fazê-lo - no quadro das Nações Unidas. Devem fazê-lo - e já estão a fazê-lo - envolvendo iraquianos, vindos ou não da oposição no exterior. E devem sobretudo fazê-lo entregando o destino do Iraque aos iraquianos o mais depressa possível, em democracia, num quadro plural, talvez federal, o mais estável que for possível. E devem ser esses iraquianos, o povo iraquiano, a escolher os países com quem negociarão, a quem venderão o petróleo e a quem contratarão o trabalho de reconstrução (e escrevo isto sem me esquecer do espectáculo repugnante dado nestes últimos dias pela França e pela Alemanha a tentarem atrelar-se ao cavalo da vitória em nome dos interesses das suas empresas).Mas o que nos sobra de ontem são imagens fortes como aquele "somos livres" que gritava, eufórico, em Najaf, um velho iraquiano ao ver chegar soldados iraquianos do contingente criado pelos oposicionistas. Vestiam uniformes americanos mas distinguiam-se pelos lenços "à palestiniano" que traziam em redor do pescoço. O que mostra que mesmo depois de terminada e vencida esta guerra - e ela não está ainda terminada -, é necessário vencer a paz. Não só no Iraque, mas em todo o Médio Oriente. A começar pela Palestina. Sem isso a primeira vitória da visão de Wolfowitz - a previsão de que os exércitos aliados seriam recebidos como libertadores - não terá a sua mais importante sequência: criar uma democracia e gerar um efeito dominó democrático em toda a região. Para que muitos possam repetir o grito dos iraquianos: "somos livres". E que nem só "Saddam é inimigo de Deus": muitos dos seus líderes autoritários e corruptos também são. PS - Ontem houve órgãos de informação que deram mais importância ao que aconteceu a alguns jornalistas em Bagdad do que ao que se passava em Bagdad, esquecendo que os jornalistas fazem as notícias, não se colocam no lugar das notícias.

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