Violência contra os idosos: filhos e cônjuges são os agressores

Muitas vezes telefonam só para desabafar, nem pensar em apresentar queixa à polícia. Falam dos maus tratos físicos, de como são sobrecarregados na lida doméstica, das humilhações a que são sujeitos frequentemente - "Tomara que morresses", "já não serves para nada".

Os idosos que recorrem à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) têm mais a temer quando estão em casa, do que na rua. Porque os crimes de que são alvo são cometidos sobretudo pelos cônjuges e pelos próprios filhos.

Os números, reconhece o psicólogo Daniel Cotrim, assessor técnico da direcção da APAV, são "apenas uma pequena parte da realidade". No ano passado, a associação acompanhou, através de contactos telefónicos ou nos gabinetes de apoio, 455 pessoas com 65 ou mais anos, que foram alvo de um total de 895 crimes, entre os quais 706 de violência doméstica. Os companheiros foram os agressores em 52,5 por cento das situações. Os filhos assumiram esse papel em 30 por cento dos casos.

Em terceiro lugar aparecem os elementos mais jovens da família: em 34 crimes relatados (4,8 por cento), foram os netos a violentarem os avós. "Alguns estudos indicam mesmo que, na família, as agressões pelos netos têm vindo a aumentar", continua Cotrim.

A violência acontece de muitas formas. Quem liga para a APAV fá-lo menos devido a assaltos ou roubos - por exemplo, foram registados apenas 87 crimes contra o património -, e mais porque sofre em casa. Das humilhações, ameaças e ofensas aos maus tratos físicos que, segundo Cotrim, "passam pela negligência, o não querer saber, o sobrecarregar com algumas tarefas, como ir buscar os netos à escola, arrumar e limpar a casa". Há quem não hesite em transformar o avô ou a avó da família no empregado doméstico, "mas sem ordenado". Mesmo quando já não há forças para isso.

"Perdeu-se o respeito que havia pelo cidadão idoso. A partir do momento em que já não trabalha, deixou de ser um elemento útil e começa a ser encarado pela família como uma espécie de peso morto, alguém de quem se espera que faleça, um destes dias, e deixe um lugar vago em casa", diz o psicólogo.

Violência em todos os estratos sociais

A forma como as famílias tratam os seus velhos não parece ser muito influenciada por factores económicos e sociais. Aliás, Daniel Cotrim até acredita que "muito deste tipo de violência acontece em meios mais favorecidos". É nestes estratos que as pessoas estão menos tempo em casa e têm menos disponibilidade, explica. Há sempre os lares. Mas muitos idosos teimam, pelo menos enquanto têm voto na matéria, em não sair da sua casa ou de perto dos seus. Medos com alguma dose de fundamento a julgar pelas palavras do psicólogo: "Há lares e lares. Há muito bons, mas também muito maus e nesses as pessoas também acabam por ser vítimas de um conjunto de outras situações: maus tratos físicos, psicológicos, negligência médica...".

Nestes casos, a APAV procura confirmar os factores relatados e articula-se com as autoridades competentes no sentido de fazer a denúncia da instituição onde algo de errado se está a passar.

Quando os problemas acontecem na família o caso muda de figura: os operadores da APAV tentam que o idoso vá a um gabinete da associação para apoio psicológico; mas muitas situações não chegam a ser encaminhadas judicialmente, porque é essa a vontade de quem se queixa.

"Estas pessoas são muito votadas à solidão, têm muitas dificuldades, estão muito dependentes e vão perpetuando estas situações de maus tratos, de violência no seio da família, porque não têm para onde ir. Há muitas dificuldades em acusar a família", explica ainda o psicólogo. Não é, afinal, muito diferente, do que se passa com as crianças, acrescenta.

E como muitos casos ficam sem solução, há idosos que os técnicos já conhecem de longa data. "Muitas vezes, ficam-se pelo contacto telefónico, desabafam um pouquinho. Há pessoas que mal dizem o nome, nós já sabemos quem são. Há outras que passam pelos gabinetes com regularidade". Querem apenas um pouco do tempo de quem as ouve e algum carinho.

Processos de apoio 455 477

Crimes de violência doméstica 706 502

Crimes contra pessoas/humanidade (negligência médica, violação...) 93 102

Crimes contra o património (roubos, furtos, burlas...) 97 92

Crimes contra a vida em sociedade e Estado 2 11

Crimes rodoviários 7 9

Crimes relatados (total) 895 718

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