Decifrar o acto da criação

João Gaspar Simões foi sempre contra os opressores da liberdade moral. Provém daí a força da sua integridade e a importância do seu magistério. Reclamando-se de Albert Thibaudet, como referência maior, adquirira a convicção de que a arte é produto de sensibilidade, de estudo, e de uma viva apresentação do homem até limites possíveis. Como todos aqueles que atingem extensa notoriedade, foi obrigatoriamente contestado. Porém, não era, apenas, um grande crítico literário. Escreveu, entre biografias, peças de teatro e romances, um notabilíssimo "Elói, ou Romance numa Cabeça", a merecer releitura e atenção cuidadosas. Este homem, que vestia com esmero e gostava de conduzir belos carros e de amar belas mulheres, trabalhou, com afã e honra, até ao remate final dos dias. Na imprensa, encontrou a tribuna e o ganha-pão. Mas também fundou editoras, organizou antologias, traduziu, prefaciou, polemizou (ficou célebre o afrontamento com Aquilino), tentando decifrar (e dizer aos outros) o carácter insólito da criação. Colaborador do "Diário de Lisboa", criticou, com veemência, certo autor, amigo do director do jornal. O conflito entre a dignidade e a submissão impeliu-o a deixar, honrada e altivamente, o vespertino. Depois, escreveu no "Diário Popular", em periódicos do Norte, e, finalmente, no "Diário de Notícias", onde realizou um trabalho ingente. A pedagogia e o rigor associavam-se, sem nunca capitularem na rigidez. Certamente que Gaspar Simões cometeu injustiças, por vezes atrozes. Todavia, cometeu-as na convicção de que estava certo, segundo os parâmetros por que se regia. O poder de que ele dispunha levou Augusto Abelaira, um dia, a considerar que uma crítica "boa" de João Gaspar Simões fazia vender, de imediato, pelo menos mil e quinhentos exemplares do livro apreciado; e uma crítica "má" liquidava-o sem remissão. Irredutível ao compadrio, à conivência, à indignidade de contrariar a sua própria consciência, alinhou um bom número de inimigos vesgos e uma avultada quantidade de amigos calorosos. Preso pela PIDE, no episódio da atribuição do Prémio da Novela a Luandino Vieira (então nas masmorras do Tarrafal) o comportamento de Gaspar Simões pautou-se por uma excelência de carácter e por uma inteireza de espírito - de que nem todos os envolvidos no caso se puderam orgulhar. Ele é um dos grandes portugueses do século XX.Pessoalmente, devo-lhe atenções, livros com amáveis dedicatórias, indicações de natureza cultural. Aprendi mais com ele do que com os meus professores de Literatura. E esse débito começou, ainda eu aluno liceal, na leitura de uma série de artigos, "Cartas a um Jovem Desportista que se Interessa pela Cultura", que publicou em "A Bola". O meu pai paginava o então semanário, dirigido por Cândido de Oliveira, e levava-o consigo, aconselhando-me a leitura do rodapé, na última página, com a assinatura de Gaspar Simões. Anos depois, tomei conhecimento dos factos que conduziram o crítico a escrever num semanário de desportos. Fora o próprio Cândido de Oliveira, indignado com o aviltante incidente no "Diário de Lisboa", quem convidara Simões a colaborar, alegando que "os livros nunca fizeram mal a ninguém, e muito menos ao futebol".O folhetim era lido, e por mim passado de mão em mão, num grupo de rapazes que se reunia no Café Ribatejano, aos Anjos, na década de 50, e onde se amesendavam Ricarte Dácio de Sousa, António José Forte, Costa Pinheiro, José Prudêncio, Luís Vaz de Sousel - e, por vezes, Herberto Helder. O texto semanal prolongava e multiplicava divisíveis ressonâncias, estabelecendo, entre todos os rapazes do café, laços de reciprocidade que se mantiveram até hoje. Até isso eu devo a João Gaspar Simões.*Romancista e jornalista

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