7 de Fevereiro de 1935

1 - Há só um dia em que se nasce, há só um dia em que se morre. Regra geral, certos humanos (pessoas como nós) conhecem o seu dia de nascimento e desconhecem o seu dia de morte. Quantos milhares de vezes, em 68 anos de vida, tive eu que escrever ou citar a data titular deste artigo, para ser reconhecido como mim, para me identificar ou me identificarem? Sete barra dois ou dois barra sete (há modas e houve tempos) e um ano que cada ano se torna mais distante. Já sou dos raros que ainda o vejo de calções. A esmagadora maioria não o conhece de parte nenhuma, a não ser dos livros de história, ou das datas de nascimento, ou morte, de pais e avós.Mas como eu andei com ele desde a escola, pensei que tinha para com ele particulares obrigações. Afinal de contas, festejei-o muito, de muito diversas maneiras, com muito diferentes pessoas, tardes dentro ou noites fora. Ao menos uma vez na vida, e mais vale tarde do que nunca, devia-lhe merecidíssima atenção. É hoje, aproveitando a coincidência mensal e a coincidência de setes.Até porque, tanto quanto me lembro (bem sei que há quem diga que a memória é traidora) vivi muito distraído esse dia em que vim ao mundo, num quarto de um terceiro andar de um prédio de Lisboa (nasci em casa, como, em 1935, nasciam quase todos que a tinham). E vivi-o muito pouco. Não chegou a hora e meia, pois, segundo sempre me disseram e consta das certidões, eram 22 horas e 35 minutos quando anunciaram aos meus pais o terceiro filho, primeiro de masculino sexo. Depois, as primeiras notícias que me chegaram de mim datam de 23 de Fevereiro. Continuava tão distraído que não compareci no acontecimento que imortalizou essa segunda data: o meu registo.2 - Mas eu não estou aqui para contar a tenríssima infância ("Mãe, ainda não chegou o meu tempo") mas para glorificar uma data que me deu tantas horas tão felizes.Não foi ideia nova, não foi ideia de velho. Da primeira vez que me decidi a umas pesquisas, corriam os anos 70, ainda não era Abril. Coisa dos meus tempos trintões. O "Diário de Lisboa", um jornal catorze anos mais velho do que eu (n. 1921) e que morreu há quase treze (m. 1990) resolveu comemorar os 50 anos dele com cinquenta volumes (em fascículos) dedicados a esse meio século. Cada ano do jornal, bem comprimido, devia originar um livro com doze fascículos, em que, em "fac-simile" das edições da época, se resumisse um mês num dia. Não era uma ideia original, mas era a ideia geral.José Cardoso Pires foi convidado para dirigir o empreendimento e convidou uma equipe pintalgada, da qual recordo melhor o Nuno Bragança e o César de Oliveira. A certa altura, o Nuno deu baixa e o Cardoso Pires convidou-me para o substituir. Durante uns meses, deram-me um gabinete, ali para as bandas de São Mamede, que eu ocupava das 6 às 8, vasculhando "Diários de Lisboa" de antanho. Diverti-me imenso e aprendi bastante. Sem grandes resultados, porque a certa altura o jornal desistiu da ideia que estava a ficar muito cara. Mas foi durante essa minha efémera actividade de investigação jornalística que, um dia, acordei com a obsessão de saber o que tinha acontecido a 7 de Fevereiro de 1935. No original, e não nas cópias de que só me começo a lembrar nos anos 40.Assim que descobri que, no momento em que me descobriram, os lisboetas que não dispensavam esse vespertino podiam ler na primeira página dele o célebre artigo de Fernando Pessoa em defesa da maçonaria, reacção do poeta à proposta do deputado João Cabral de proibir, a qualquer português, a filiação em associações secretas. Pessoa perdeu e Cabral ganhou. A 21 de Maio, mês em que me vacinaram contra a varíola e fiz a minha primeira viagem (de Lisboa para Santiago de Cacém) a Maçonaria foi extinta.Norton de Matos, grão-mestre da Maçonaria em Fevereiro de 1935, ou Domingos Fezas Vital, autor do parecer mais acrisolado contra a filha de Satã, se fossem vivos, deviam lembrar-se bem desse dia 7, mas por razões que nada tinham que ver com o meu bercinho.3 - 7 de Fevereiro célebre em Portugal, no século XX, não foi o de 1935, mas o de 1927, quando rebentou em Lisboa a revolução que Sarmento Pimentel chamou do Remorso. 200 mortos e 900 feridos (coisas hoje impensáveis) foram saldo final da única militarada que ia dando cabo do 28 de Maio.No dia em que eu nasci, as comemorações desse grande sucesso da ditadura (desse grande susto da ditadura) eram ainda o acontecimento das primeiras páginas, o único a ter direito de fotografia no "Diário de Notícias" de Schwalbach. Na Missa dos Mártires fizeram-se representar Carmona e Salazar, enquanto, no Cemitério dos Prazeres, o ministro da Guerra espalhava flores pelos túmulos das vítimas, em "homenagem à memória dos que tombaram na defesa da ordem".Em França, comemorou-se outro Fevereiro sangrento, ocorrido não a 7 mas a 6 e em 1934. Chiappe, prefeito da Polícia, tinha chefiado nesse dia uma manifestação de extrema-direita que não logrou os seus fins. Mas as "Juventudes Patrióticas", que Buñuel evocou muito mais tarde, em jeito de exorcismo, ainda mexiam.Por aqui, a Comissão de Propaganda da União Nacional convidava os Sindicatos Nacionais do Distrito de Lisboa a "encorporarem-se" na manifestação ao "Senhor General Carmona", prevista para 10. Preparava-se a "reeleição" do venerando chefe do Estado, a primeira de três "reeleições" (35, 42 e 49) durante os seus quatro mandatos.Não cheguei a tempo de me inscrever num banquete marcado para 24, com reservas em função. Um grupo de escritores, artistas e jornalistas ia jantar ao restaurante Garrett, no Largo do Chiado, 9, para defender "os princípios católicos de ordem moral e social que sempre caracterizaram o nacionalismo português na sua expressão mais bela e mais profunda".O mesmo "DN" contava que o "Times" elogiava a situação florescente de Portugal, "onde existem poucos desempregados", e "os impostos são poucos elevados". Simultaneamente, o "Figaro" exaltava a serenidade e firmeza de Salazar, "ditador apesar de tudo".O crime do dia, condenado na Boa Hora, foi um furto de arroz. Por bilhetes desde 1 escudo e 60 centavos podia ver-se no Capitólio dois "grandes filmes": "O Aventureiro de Florença" e "Capricho de Princesa"."La Dame aux Camelias" de Abel Gance (1934) estreou no Politeama, no Odeon e no Palácio. "Caravan", realizado na América pelo alemão Erik Charell, passava em versão francesa (hoje perdida e tão procurada) no Tivoli, enquanto um Raoul Walsh dos autênticos (com Marion Davies e Bing Crosby) triunfava no São Luiz.Só 5 escudos ("nem um centavo a mais") custava a nova caixinha de bolso das Pastilhas Richelet. "Com uma Pastilha Richelet na boca não tem que temer o contacto com o frio da rua, ao sair de casa, do teatro ou de local aquecido".E foi no 7 de Fevereiro em que eu nasci que morreu o tenente-coronel Silveira Ramos, demitido em 1910, readmitido por Sidónio, e novamente demitido em 1919, pela sua participação nas incursões monárquicas. "A actual situação reintegrou-o." Tinha 55 anos, era solteiro e aos seus últimos momentos assistiram, além dos sobrinhos, os srs. drs. Fernando e Pedro da Silveira Ramos, marquês de Belas, os srs. Francisco Manso Preto, dr. Álvaro Reis Torgal, comandante Almeida Teixeira, dr. Carlos Tavares, dr. Sousa Botelho, coronel Cristovam Aires, conde da Torre, Jorge Bleck, Vergílio Barros e Alberto e João Maia. 13 pessoas à cabeceira de um moribundo, num quarto particular do Hospital de S. José. Não consta dos meus registos quantas teriam estado à cabeceira da minha mãe, quando eu nasci. Presumo que não fossem muitas menos. Há 68 anos, nascimentos e mortes queriam-se concorridos.E foi uma quinta-feira. Três dias depois do meu nascimento, a Lua ficou em quarto crescente. A temperatura máxima 11º. A mínima 9. Vento de nordeste moderado. Parece que foi ontem.

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