Tratado do Eliseu: Como Adenauer e De Gaulle construíram a integração europeia

O Tratado do Eliseu assinado há precisamente 40 anos, em 22 de Janeiro de 1963, por Konrad Adenauer e Charles de Gaulle, para formalizar a reconciliação entre alemães e franceses, é, como todos os grandes tratados, multidimensional. Antes de mais importa recordar o enquadramento histórico-político que o rodeou e sem a qual ele não teria sido celebrado. Adenauer era, depois do caso "Spiegel," apenas um chanceler a prazo. Tinha atingido os 86 anos e as crises de Berlim e do Outono de 1962 tornaram a sua liderança insustentável. Entretanto, esperava na sombra um sucessor - Ludwig Erhard - que lhe desagradava, mas que era incontornável. A resignação não fazia porém parte do seu carácter, por isso Adenauer aproveitou os poucos meses que lhe restavam no poder para determinar, antes de mais na política externa, as grandes opções que sobreviveriam à sua legislatura. O caminho para a reaproximação franco-alemã fora já pavimentado por intelectuais e políticos, pela criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (1951) e mais tarde pelo Tratado de Roma (1957). A CEE era, no entanto, um espaço de integração económica - e devia, na perspectiva de De Gaulle, limitar-se a sê-lo - cujo seu núcleo essencial, até ao tratado de Maastricht, se podia resumir com a locução "in principio erat homo oeconomicus". Não foi todavia um ataque súbito de sentimentalismo que levou Paris e Bona, "inimigos hereditários", a fazer profissão de fé na amizade franco-alemã, mas sim a dura "raison d'état". Alicerçando-se nesta, De Gaulle inverteu a tradição de Richelieu de procurar manter os vizinhos germânicos fracos e fragmentados que foi o âmago da política europeia francesa durante três séculos. Na Alemanha do "milagre económico" grassava um sentimento de ameaça desde o ultimato de Kruchtchev acerca de Berlim, que atingiu o coração da política de Adenauer. Durante quase uma década o chanceler recusara todas as propostas para concretizar a reunificação se tivesse de sacrificar os laços com o Ocidente. Quando se tornou evidente que a administração Kennedy não se oporia pela força à construção do Muro, as relações entre Washington e Bona tornaram-se progressivamente mais tensas. Paris, que tinha mais receio do reacender do nacionalismo alemão do que das intimidações soviéticas, decidiu estender a Adenauer uma âncora no Ocidente, incluindo-o numa constelação política europeia menos dominada pelos Estados Unidos. O que De Gaulle tinha em mente era uma Europa continental organizada segundo as linhas da Alemanha bismarckiana, ou seja unificada numa base de Estados, na qual França desempenharia um papel hegemónico, teria a mesma função que a Prússia tivera na Alemanha imperial. Porém, a França - num momento em que a guerra da Argélia havia deixado profundas cicatrizes, tornando claro que a época das grandes potências coloniais havia chegado ao fim, e em que as grandes linhas da política mundial se traçavam na Casa Branca e no Kremlin - ao contrário da Prússia, não era o Estado mais forte da Europa Ocidental, nem tinha força económica para subjugar os outros. Para aumentar a sua esfera de influência - afectada pela decisão de excluir a Grã-Bretanha do mercado comum, apesar da pressão norte-americana - Paris precisava de Bona. Nasceu assim um tratado de amizade mútua que previa consultas bilaterais permanentes: "os dois governos consultar-se-ão um ao outro, antes de qualquer decisão, sobre todas as questões importantes de política externa (...) de interesse comum (...) tendo em vista chegar, tanto quanto possível, a uma posição similar".As últimas quatro décadas de cooperação foram fecundas. Sem o entendimento franco-alemão o mercado comum, a livre circulação de trabalhadores, os alargamentos sucessivos e o euro teriam sido possíveis, mas nem sempre harmoniosos. Não obstante o tocante gesto, a mão dada em Verdun, entre o Presidente francês François Mitterrand e o chanceler Helmut Kohl, a velha desconfiança e a rivalidade não desapareceram. Com a reunificação alemã elas assomaram à superfície. A França mergulhou numa colossal incerteza, apercebendo-se pouco a pouco, num processo que culminou na Cimeira de Nice, de que a Europa não é mais "um jardim à francesa". A Alemanha debruçou-se sobre si mesma numa vasta introspecção sobre o seu novo papel no mundo. A gigantesca tarefa do alargamento da União Europeia e os desafios resultantes da crescente globalização e a ameaça assimétrica do moderno terrorismo conferiram uma nova razão de ser à aliança franco-alemã, sacudindo a letargia causada pela reunificação. Alemanha e a França são mais do que nunca nações complementares no xadrez político internacional.Contra todos aqueles que proclamavam alto e bom som o estertor do motor comunitário, Gerhard Schroeder e o Jacques Chirac apostaram em fazer da parceria bilateral o fulcro de Arquimedes da Europa do futuro. Com este objectivo, apresentaram propostas comuns na área da Segurança e Defesa, Interior e Justiça e, mais recentemente, no âmbito da reforma institucional. Os cínicos apontam que a "presidência bicéfala" da UE, a última iniciativa franco-alemã, é uma fraca fórmula salomónica, uma via entre o intergovernamentalismo francês e o federalismo alemão. Todavia, a mestria diplomática demonstra-se na arte de encontrar compromissos e quando não há um caminho, faz-se, como diz o provérbio espanhol, "caminho a caminhar".

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