Habitantes de aldeia deixaram poder ir ao Guadiana por caminho usado durante séculos

Os habitantes na aldeia de Corte Sines, no concelho de Mértola, estão inconformados com a decisão do tribunal de comarca que lhes interditou o acesso ao rio Guadiana através de uma estrada rural que atravessa a Herdade da Brava.O caminho vicinal que a população utilizou durante séculos faz agora parte de uma zona de caça turística, criada há uma década na herdade. O seu proprietário, o poderoso empresário João Pereira Coutinho, alega estar a promover turismo cinegético de alta qualidade, para a realização de um torneio designado "Caça aos Troféus". Neste sentido, concentrou na herdade 600 veados, 120 gamos e 160 muflões, que fazem parte de um investimento que já atingiu os dez milhões de euros. Na acção que a empresa proprietária da herdade moveu contra a Câmara de Mértola, por esta ter tentado proceder, em Abril de 2000, ao arranjo do caminho que atravessa o couto de caça, diz-se que o propósito do empreendimento é "preservar o equilíbrio ambiental existente e o tranquilo desenvolvimento da fauna e flora". E que este objectivo não pode ser alcançado enquanto circularem "pessoas estranhas" no interior da herdade, pondo em perigo a procriação, o conforto e a segurança das espécies. Os habitantes da aldeia poderão até "inviabilizar o empreendimento", alegou a empresa perante o tribunal."Os veados são mais importantes que as pessoas", desabafa um dos habitantes da aldeia, Joaquim Jacinto do Nascimento, recordando que desde que o seu primeiro ano de vida, até 75 que já conta, sempre usou o caminho. " O senhor Pereira Coutinho comprou a herdade, mas não pode comprar o caminho, que é do povo", observa outro morador, Daniel Rodrigues. Criticada é não só a decisão do tribunal como a câmara de Mértola, por não os ter informado da sentença. "A força do poder cala tudo", barafusta Manuel Severino, a quem custa mentalizar-se de que, a partir de agora, "só passa no caminho quem eles querem".Mesmo assim, a população não desiste, e as cerca de 200 almas que vivem na aldeia, na sua esmagadora maioria idosos, estão a quotizar-se para pagar a um advogado, com o objectivo de recorrer da sentença. Pereira Coutinho propõe que as pessoas passem a utilizar outro caminho para chegar ao rio. Mas a alternativa parece-lhes inviável: "Temos de passar a percorrer 13 quilómetros, quando antes só andávamos três", observa Manuel Severino."A partir de agora já não podemos apanhar um peixe para comer, nem tomar banho no Verão", lamenta Jacinto do Nascimento, que foi " muitos anos pegado noite e dia na pesca" da lampreia, do muge, do sável, da tainha. Ao longo de quase seis quilómetros, o Guadiana passa a ter as margens direita e esquerda vedadas por herdades de João Pereira Coutinho, com aramados de quase três metros, nos sítios de Vau de Lucas e Moinhos da Brava.A decisão do Tribunal de Mértola não mereceu qualquer contestação do actual executivo camarário, que é socialista. Foi à anterior gestão, liderada pelo PCP, que a sociedade proprietária da herdade moveu a acção reivindicativa, reclamando o caminho como privado. O anterior presidente da câmara, Paulo Neto, agora vereador, acusa também o seu sucessor, Jorge Pulido Valente, de " não ter recorrido da sentença" e de "ter escondido" da população a decisão do tribunal. O PòBLICO procurou ao longo de duas semanas ouvir o autarca, mas este esteve sempre indisponível.Para suportar a sua decisão, a juiza encarregada de analisar o processo começa por fazer referência a um assento do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 1989, que considera serem públicos "os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público". Mas dois anos depois o STJ adverte que o assento "deve ser interpretado restritivamente". A magistrada cita o Código Civil Anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, segundo o qual "o simples uso pelo público, mesmo que imemorial, não pode bastar para qualificar determinada passagem como caminho público". A juíza diz ter ficado provado que o caminho só é percorrido por "dois ou três pescadores profissionais e alguns amadores, que o utilizam para ir ao rio pescar", acrescentando ainda haver pessoas que, no Verão, ali vão a banhos. O tribunal não reconhece que, mesmo em tempos idos, o caminho tivesse sido um meio de comunicação importante."Crê-se que teria as características de um atravessadouro", presume o juiz, salientando o facto de este tipo de caminho ter sido abolido em 1973. Desta forma, e como o caminho já não mantém, no entendimento do tribunal, as características de um espaço público, a empresa proprietária da herdade foi considerada sua "dona e legítima possuidora". C.D.O ex-presidente da Câmara de Mértola, Paulo Neto, garante que o caminho da Brava "já fez parte do mais importante elo de ligação entre Sevilha e Lisboa". O historiador Miguel Rego concluiu por seu turno, na sequência de um levantamento que em tempos efectuou, que ele já era uma via importante no tempo da Guerra da Restauração. Ainda hoje existe, na margem direita do Guadiana, uma fortificação construída no século XVII para defender a ligação entre as margens do rio.A população de Corte Sines garante que pessoas da aldeia o têm usado até agora, para apanhar a carreira para Beja ou para se deslocar à aldeia de Corte Gafe, que fica do outro lado do rio. Hoje, cerca de 90 por cento do concelho de Mértola está preenchido com coutos de caça, admite o ex-presidente da autarquia. Em 2002 continuaram a ser concedidos licenciamentos para mais reservas do género. C.D.

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