Grandes bebedores

Paulo Anunciação

Antes de subir para a casa arrendada no 1º andar direito do número 16 da Rua Coelho da Rocha, o homem magro, de fato escuro e chapéu amachucado parava sempre na leitaria do senhor Trindade, no outro lado da rua. Fernando Pessoa viveu grande parte dos últimos 15 anos de vida naquela rua do bairro de Campo de Ourique. Extremamente tímido, crescentemente melancólico, Pessoa trocava umas palavras de circunstância enquanto puxava da garrafinha preta que guardava religiosamente na pasta de cabedal. "2-8-6!", pedia o poeta, enigmático. O senhor Trindade entregava-lhe os fósforos (dois tostões), os cigarros (oito tostões) e a garrafa atestada de bagaço (seis tostões). Pessoa agradecia, com a sua voz de catarro, as palavras cortadas aqui e ali pela tosse. Ele fumava pelo menos 80 cigarros por dia. Bebia como uma esponja. Com a sua reserva de 2-8-6 debaixo do braço, o poeta subia as escadas que conduziam ao seu mundo de papéis, personagens e fantasmas nocturnos.Não: vou existir. Arre! vou existir. E-xis-tir...E-xis-tir...Dêem-me de beber, que não tenho sede! Fernando PessoaSão inúmeros os testemunhos da devoção de Pessoa ao vinho e, sobretudo, ao bagaço. São célebres os "vales à caixa" nos diversos escritórios de Lisboa onde trabalhou como tradutor ou correspondente comercial. Ele passava horas sentado no Martinho da Arcada e outros locais da Baixa, metido com os seus papéis ou à conversa com os amigos, enquanto cafés e copos de bagaço se renovavam na mesa. "[Pessoa] Era um tipo muito esquisito, que não olhava as pessoas de frente, coisa que sempre me impressionou muito. [...] Tinha os dedos amarelos, de tanto fumar, e mandava um bafo a aguardente que era demais", recordou em 1988 o professor Calvet de Magalhães, um dos fundadores da cooperativa Árvore, no Porto. Ele e dois amigos, adolescentes, tinham lições de inglês, três vezes por semana, com Fernando Pessoa, num escritório da Rua de S. Paulo. "Às vezes, de resto, [Pessoa] fazia um intervalo, entregava-me cinco tostões e mandava-me à Dona Maria, lá em baixo, buscar uma garrafa de branco e pirolitos".Em 1954, Luís Pedro Moitinho de Almeida - filho do proprietário da firma de importação e exportação Moitinho d'Almeida, Lda., onde Fernando Pessoa trabalhou durante a década de 20 - recordou a impressão que lhe causou o convívio com o poeta no escritório da Rua da Prata. "Muitas vezes assisti a cenas como esta: o senhor Pessoa, que estava a trabalhar, em geral sentado em frente da máquina de escrever, [...] levantava-se, pegava no chapéu, ajustava os óculos e dizia: 'Vou a casa do Abel'. Ninguém achava estranho, excepto eu, que presenciei aquela cena, pela primeira vez, num dia de Verão de 1923". Anos mais tarde, Moitinho percebeu o que Pessoa queria dizer. O poeta referia-se, simplesmente, às tabernas da firma Abel Pereira da Fonseca, as suas preferidas. Numa delas, aliás, Pessoa deixou-se fotografar por um amigo (ele odiava ser fotografado, não gostava de falar ao telefone e tinha terror às trovoadas) na sua atitude clássica: de pé, diante do balcão, emborcando de um só trago um cálice de bagaço (mais tarde, Pessoa ofereceu essa fotografia à namorada Ofélia Queiroz, com o comentário "Em flagrante delitro"). Moitinho recorda ainda um diálogo com o poeta a propóstio das suas idas constantes a casa do Abel. "O senhor bebe como uma esponja!", disse-lhe o jovem Luís Pedro. "Pessoa respondeu-me de imediato, com um sentido de humor tipicamente britânico: 'Bebo como uma esponja, não. Como uma loja de esponjas, e com armazém anexo!', respondeu. Este era o único defeito - se lhe podemos chamar defeito - que lhe conheci. [...] Mesmo o meu pai, que não o levava muito a sério como poeta, gostava muito dele e dava-lhe carta branca para sair sempre que lhe apetecesse porque, dizia, Pessoa voltava sempre mais em forma para trabalhar", conta Moitinho de Almeida. Fernando PessoaParece, portanto, que Pessoa não era muito exigente em matéria de bebida. "Na obra de Fernando Pessoa, o vinho é inúmeras vezes citado, mas não existem referências a marcas ou regiões", escreve Luís Machado no livro "À mesa com Fernando Pessoa". A Sociedade Comercial Abel Pereira da Fonseca detinha, na altura, um verdadeiro monopólio da distribuição de vinho a granel na zona de Lisboa. Além de uma rede própria de mais de cem tascas - as preferidas de Fernando Pessoa -, a sociedade distribuía o vinho, em geral oriundo do Ribatejo e das zonas saloias, por dezenas de casas de pasto, pequenos restaurantes, leitarias e carvoarias da cidade.O poeta era um grande apreciador de bagaços e aguardentes ("Ele bebia cálices de aguardente, a qualquer hora do dia, de pé, diante do balcão da primeira taberna que se lhe deparasse", nota o biógrafo João Gaspar Simões), mas também bebia whisky e vinho do Porto em ocasiões especiais como jantares de amigos ou reuniões de familiares. Sabe-se, também, que Pessoa bebericava absinto, por influência do amigo Mário de Sá-Carneiro, que estudou em Paris a partir de 1912. Este licor de cor verde-esmeralda tinha fama de eliminar febres e provocar alucinações e era muito popular no meio boémio e artístico parisiense na viragem do século. Chamavam-lhe a "fada" ou "musa verde", porque promovia a criatividade. Baudelaire era um grande apreciador. Tal como Zola, Musset, Picasso, Toulouse-Lautrec (e Van Gogh, que terá cortado a orelha durante uma crise sob os efeitos desta bebida). Os efeitos secundários, de facto, não se ficavam pela criatividade. Alucinações, convulsões, desmaios, demência e, por vezes, a morte estavam frequentemente associadas ao absinto. Fernando Pessoa deixou de beber este licor fortíssimo porque lhe causava problemas gástricos. Em Março de 1915, o governo francês interditou definitivamente o absinto. Sá-Carneiro suicidou-se no ano seguinte num quarto do Hotel Nice, em Paris.dir-lhe-ei: embebede-seBernardo SoaresApesar dos hábitos de bebida, Fernando Pessoa nunca foi visto embriagado por todos aqueles que lidaram com ele. Alguns, poucos, testemunhos, referem que ele não bebia tanto assim. Tudo não passaria, afinal, de uma blague, uma faceta que o poeta gostava de cultivar, para chocar as pessoas. "[Pessoa] gozava de uma clássica e especial resistência aos efeitos secundários do álcool, que lhe permitia manter-se imperturbável depois de ingerir quantidades acima do normal", escreveu Eduardo Freitas da Costa, primo do poeta. Este autor refere que seria impossível encontrá-lo bêbedo ou numa situação "menos própria": "O que desde sempre caracterizou o aspecto exterior de Fernando Pessoa, ao longo da sua vida, foi o asseio impecável e a correcção das suas camisas brancas imaculadas, que usava sempre, e a dignidade intocável dos seus fatos pretos ou escuros, cortados pelos mestres da casa Lourenço & Santos".Aquela resistência ao álcool, porém, era pouco mais do que aparente. Ao longo da década de 30, Fernando Pessoa envelheceu enormemente. O chapéu passou a esconder os poucos cabelos grisalhos que lhe restavam na cabeça. O olhar foi perdendo todo o brilho de anos passados. A saúde começou a fraquejar, não só devido à constituição física, frágil, mas também por força dos abusos do álcool e do tabaco. O assunto continua a suscitar polémica, ainda hoje, tal é a dificuldade em traçar com precisão os contornos exactos da personalidade e da vida do poeta. Mas parece haver quase unanimidade neste ponto, sublinhado por José Blanco: "O álcool teve um papel importante na vida de Fernando Pessoa e ainda mais na sua morte". No dia 28 de Novembro de 1935, Pessoa sofreu cólicas hepáticas terríveis. Amigos transportaram-no, de carro, para o hospital de S. Luís dos Franceses, no Bairro Alto. Morreria dois dias mais tarde, um sábado chuvoso, por volta das oito da noite. Tinha 47 anos.

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