Messiaen, dez anos depois

Oportunidade para escutar uma das obras maiores do repertório pianístico do século XX por Michel Beroff, um dos pianistas preferidos de Messiaen.

Passados dez anos após o falecimento de Olivier Messiaen (1908-1992), o seu universo criativo continua a ser tão fascinante como na altura em que cada uma das suas obras foi criada. A sua marcada personalidade deu-lhe um lugar particular na história artística do século XX: ao longo de sete décadas de vida dedicadas à música, Messiaen foi capaz de assimilar, acompanhar, criar e instigar algumas das novidades mais determinantes da composição contemporânea, ao mesmo tempo que se manteve fiel à sua individualidade, sem nunca renunciar aos princípios religiosos que nortearam a sua existência. A Fundação Gulbenkian decidiu homenagear a sua memória na presente temporada, incluindo na sua programação musical um ciclo de cinco concertos nos quais serão dadas a ouvir algumas das suas obras mais importantes. A ligação entre a Fundação Gulbenkian e Messiaen vem de longe, como o atesta o facto de, em 1965, o compositor ter recebido a encomenda para a composição de uma obra em memória do próprio Calouste Gulbenkian. O resultado deste convite foi "La Transfiguration de Notre Seigneur Jésus-Christ", para coro misto, sete instrumentos solistas e orquestra sinfónica. A composição foi estreada em Lisboa em 1969, no Festival Gulbenkian de Música, pelo Coro Gulbenkian e a Orquestra de Paris sob a batuta de Serge Baudo, e será de novo executada em 2003, no contexto deste ciclo.Messiaen desempenhou na música do século XX um papel muito importante, o qual não se limitou apenas ao âmbito da composição musical, já que também se distinguiu como teórico, pedagogo e intérprete. A influência do seu magistério nos compositores mais jovens, pertencentes à vanguarda musical da década de 50 (Pierre Boulez, Iannis Xenakis, Karlheinz Stockhausen, entre outros), foi imensa. Contudo, esta ligação não foi incompatível com o desenvolvimento de uma linguagem muito pessoal, cujas raízes se encontram parcialmente em Claude Debussy e em Igor Stravinsky e nos representantes oitocentistas da escola francesa de órgão, da qual Messiaen foi um eminente continuador. Falar de Messiaen é, ainda, falar acerca do ritmo como parâmetro fundamental na composição. Messiaen - "compositeur et rythmicien", como ele próprio gostava de se apresentar - dedicou uma boa parte da sua vida à investigação das relações entre duração ("durée") e tempo, uma questão fundamental para a arte musical que, no seu caso, implicou um estudo e uma reflexão que ultrapassaram os habituais limites, por assim dizer, práticos e mais concretos da composição. Assim, esse assunto tornou-se para ele numa questão teórica, exposta no seu tratado "Técnica da minha linguagem musical" (1944). Contribuíram também para o desenvolvimento da sua linguagem o seu profundo conhecimento de diversas tradições musicais extra-europeias, particularmente da indiana clássica, e da métrica grega, assim como a sua paixão pela ornitologia, que o levou a copiar "do natural" os cantos dos pássaros e a utilizá-los como fonte directa para a composição. Trespassa ainda a sua música uma profunda fé religiosa - Messiaen era católico convicto -, que se evidencia na sua obra: a sua interpretação simbólica dos dogmas católicos e a sua apropriação, ao mesmo tempo mística e estética, de conceitos do catolicismo reflectem-se de forma explícita na maior parte das suas composições.O primeiro dos cinco concertos dedicados a Messiaen pela Gulbenkian realizar-se-á na próxima terça-feira, integrado no Ciclo de Piano que costuma fazer parte da programação musical da Fundação. Trará a Lisboa o pianista Michel Béroff (n. 1950), um dos mais reputados intérpretes do repertório francês para o seu instrumento (na sua discografia inclui-se, por exemplo, a integral da música para piano de Debussy, gravada para a Denon). Aluno de Yvonne Loriod, Béroff obteve o primeiro prémio de piano no Conservatório Nacional Superior de Música e de Dança de Paris, a escola onde lecciona desde 1989, e, em 1967, foi o vencedor do primeiro prémio do Concurso Olivier Messiaen em Royan, tornando-se, a partir desse momento, num dos intérpretes de referência da obra do compositor. Béroff tocará na Gulbenkian "Vingt Regards sur l'Enfant Jésus", que é considerada uma das obras maiores da literatura pianística do século XX e que faz parte do seu repertório há décadas. A primeira audição absoluta de "Vingt Regards sur l'Enfant Jésus" teve lugar em Paris, na Salle Gaveau, em Março de 1945, um ano depois da publicação da "Técnica da Minha Linguagem Musical". A obra foi interpretada pela então novíssima pianista Yvonne Loriod, integrante do grupo de músicos (entre os quais se encontrava Pierre Boulez) que receberam aulas privadas de Messiaen em 1943, pouco mais de um ano depois de que o compositor fosse libertado do campo de prisioneiros de guerra onde foi internado em 1940. Foi nesse campo onde escreveu o célebre "Quarteto para o Fim do tempo". Deve ser notado que as obras para piano escritas por Messiaen a partir desta época devem muito ao brilhante virtuosismo da que era então a sua aluna e com a qual viria a casar.Os olhares sobre o Menino Jesus estão contidos em 20 números que se sucedem durante perto de duas horas e que reflectem a pessoal fusão entre espiritualidade e renovação da linguagem musical que caracteriza a música de Messiaen. As peças estão ligadas entre si pelo conteúdo temático, mas, ao mesmo tempo, são extraordinariamente variadas e contrastantes. Simbolizam os diferentes olhares sobre o Jesus recém-nascido ("de Deus Pai", "da Virgem", "dos Profetas, dos Pastores e dos Magos"...), mas também são reflexões musicais sobre palavras de fé ("Por Ele foi tudo feito", "A palavra omnipotente"...). O propósito da obra foi assim formulado pelo seu autor: "Mais do que em todas as minhas obras precedentes, procurei aqui uma linguagem de amor místico, por vezes variado, potente e terno, por vezes brutal, de dimensões multicoloridas."A homenagem a Messiaen prosseguirá em Abril de 2003, integrada no Ciclo Grandes Orquestras Mundiais e no Ciclo de Piano. Respectivamente nos dias 6 e 7 desse mês, o Coro e a Orquestra de Baden-Baden (Friburgo), sob a batuta de Sylvain Cambreling, interpretarão a antes citada "Transfiguration de Notre-Seigneur Jésus-Christ" e a "Turangalîla-Symphonie", composta entre 1946 e 1949. No dia 15, os pianistas Dezsó Ránki e Edit Klukon tocarão "Visions de l'Amen" (1943), para dois pianos. Concluirá no mês de Maio, no último concerto da Orquestra Gulbenkian previsto nesta temporada. Será então escutada a obra "Oiseaux Exotiques" (1955-1956) sob a batuta de Michael Zilm.

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