Historiador francês quebra "tabu metodológico" e acompanha "bandidos" da Renamo

O primeiro contacto que o historiador francês Michel Cahen teve com a Renamo foi em 1988, em Lisboa. Apesar de já estar convencido nessa altura de que, "para lá das responsabilidades óbvias da África do Sul e da Rodésia", a guerra se devia "principalmente" à política do partido único, Frelimo, não se sentia, porém, ainda "pronto para ir ver o diabo". O mergulho físico no mundo da Renamo - quebrando um tabu dos investigadores de esquerda, que viam na Renamo a expressão regional do "apartheid" - ocorre apenas em 1994. Durante a campanha para as primeiras eleições livres no país, Cahen vive ao lado de Afonso Dhlakama, durante dois meses. O que viu e o que concluiu, numa entrevista realizada em Paris, por ocasião do lançamento do livro "Les Bandits - Un historien au Mozambique, 1994", editado pelo Centro Cultural Calouste Gulbenkian na capital francesa.

P - O seu livro é um caderno de viagens pela campanha eleitoral de 1994 em Moçambique. Um historiador enquanto tal pode acompanhar um acontecimento que é essencialmente jornalístico?R - O que eu estava a ver era a mesma coisa que os jornalistas viam, só que eu, espero, tenho mais cultura histórica do que eles e não tinha de produzir rapidamente. Nós escrevemos para a história imediata, mas a história imediata pode ter um atraso de seis meses; eles têm de acompanhar o acontecimento com um artigo por dia. O caderno de viagens ficou na íntegra. Acrescentei uma introdução metodológica e centenas de notas de pé de página.P - É um trabalho de jornalista nas notas tomadas e de historiador nas notas de rodapé?R - Penso que não. O leitor atento verá que mesmo nos apontamentos escrevo fazendo remissões ou associações de carácter histórico. Não é o mesmo ofício. Podem publicar-se em livro de reportagem (ainda que não escrito por um jornalista) coisas que nunca seriam postas num livro académico. Esta maneira de publicar os resultados de uma investigação permite também, espero, sair um pouco da universidade e não ser lido apenas pelos colegas.P - O jornalista, estando apenas e fisicamente num dos lados, acaba por ter uma visão parcial. O historiador, neste caso, cometeu o mesmo "pecado"?R - É impossível fazer doutra maneira. Quando fazemos "observação participante", temos de construir relações não digo de amizade mas de cordialidade com os militantes e dirigentes. Não posso cumprimentar Dhlakama e chamar-lhe "assassino". Outro exemplo: fiquei tão impressionado com a capacidade de mobilização da Renamo em certas zonas que comecei a pensar que a Renamo podia ganhar as eleições. Ora, quando eu tinha chegado, pensava que a Renamo as ia perder...P - Porque estava a ver uma realidade que de algum modo é sempre encenada...R - Não é o ponto de vista; é a posição donde se vê. Eu estava dentro de um dos lados. É por isso que o meu grupo de investigação do CNRS tinha mais outros dois colegas para estudarem outras zonas e outra temática, só que, por razões que explico no livro, isso não foi possível e eu acabei por ser o único. De qualquer maneira, quem ler o livro com atenção perceberá que o meu objectivo não era defender nem atacar a Renamo. Os que têm da Renamo e do mundo da Renamo uma ideia de diabolização vão ficar desagradados...P - ... porque o livro a humaniza?R - Se a Renamo fosse só o rapto de crianças, a chacina de mulheres, a dinamitação de hospitais, de pontes e de escolas, como podia ter conseguido actuar em 80 por cento de Moçambique, a partir de 1986?P - Quando é que começou a interrogar-se sobre isso? R - Em 1987, quando publiquei o livro (hoje completamente ultrapassado) "La Révolution Implosé", já eu defendia a tese de que, para lá das responsabilidades óbvias da África do Sul e da Rodésia, a crise se devia principalmente a razões de ordem interna relacionadas com a política do partido único, que não era capaz de um processo de unificação nacional e de desenvolvimento económico. O primeiro contacto que tive com a Renamo foi em 1988 em Lisboa. Na altura, os que visitavam a Renamo no terreno eram só jornalistas da extrema-direita e eu era, e ainda sou, marxista. Não estava pronto ainda para ir ver o diabo. Em 1990, para além de um estudo meu sobre a conjuntura moçambicana, há um livro do malogrado Christian Geffray, publicado em Portugal mais tarde ["A Causa das Armas - Antropologia da Guerra Contemporânea em Moçambique", Edições Afrontamento, Porto, 1991]. O livro em francês tinha no título uma referência à guerra civil, porque ele pensava já em 90 que se travava uma guerra civil em Moçambique. Mas o Christian queria que ele fosse lido pelos quadros da Frelimo e a expressão "guerra civil" era tabu em Maputo. No nosso grupo de investigação, já em 1988 nos convencêramos de que a guerra de agressão e desestabilização sul-africana e rodesiana tinha entrado num processo de transformação em guerra civil quando se deu a grande expansão da Renamo no território, a partir de 1983/4. P - Eles não eram realmente "bandidos armados"?R - É interessante a história dessa expressão. No início, a Frelimo não a usa. Até à independência do Zimbabwe, fala em "actividades contra-revolucionárias", o que é uma caracterização política. Quando a Renamo se expande quase chegando ao planalto maconde, a Frelimo deixa de poder atribuir a responsabilidade toda à África do Sul e inventa a expressão "bandidos armados" para dizer que o grupo não é político.P - Não é verdade que eles cometiam crimes e que não tinham ideologia?R - Crimes obviamente que é verdade. Mas o outro lado também [os cometia]. No livro, vêm alguns testemunhos horríveis sobre soldados da Frelimo obrigando uma mulher a pilar o seu bebé no pilão. Além do horror, o que interessa no testemunho é que ele diz que quem iniciou aquela prática não foi a Renamo. Temos de ter em conta que a Frelimo dominou sempre o mundo da escrita. Incluindo os meios que deviam produzir informação independente. Por exemplo, o representante da agência France Presse em Maputo era membro de partido comunista britânico e um incondicional da Frelimo. Olhou-se sempre muito para o que se passava no Sul. Era lá que estava a capital. Aí a violência da Renamo foi muito maior, havia uma política de terrorismo porque os apoios populares lá eram muito pequenos. Em contrapartida, no centro, havia zonas inteiras onde a Renamo estava como peixe na água e a Frelimo é que era muitíssimo violenta, incluindo bombardeamentos da aviação do Zimbabwe. P - O que é que a Renamo tinha para oferecer à população?R - Nada. A Renamo - no início ainda MNR [Movimento Nacional de Resistência] - é constituída por pessoas com trajectórias pessoais que as levam a odiar a Frelimo. Não são mercenários, não são bandidos. São pessoas que estão contra [a Frelimo]. Era o seu único programa. Só que "a coisa" funciona, mesmo sem eles perceberem o que acontece. Os próprios serviços secretos rodesianos se admiram. Quando a independência do Zimbabwe se aproxima, os rodesianos oferecem-se para os passar para a África do Sul e eles respondem que não, que vão continuar a luta. P - Houve portanto uma dinâmica de resistência?R - A dinâmica militar foi ao encontro de uma população que sofria de uma política do partido único, a que chamo de "paradigma de modernização autoritária". Isto é, criar o "homem novo". "Slogans" como "Abaixo o feudalismo", "Abaixo o tribalismo", "Abaixo o regionalismo", querem dizer, no fundo, para essas populações, "Abaixo a gente". Com administradores todos oriundos do Sul, que falam só português, que fazem a repressão dos ritos, que humilham os chefes tradicionais, cria-se um medo e um ódio [contra o poder da Frelimo]. Quando a Renamo chega, certos chefes tradicionais, alguns jovens excluídos do sistema escolar pensam poder utilizá-la para se protegerem do estado moderno.P - E ao tornar-se num partido civil, o que é que tem para oferecer às pessoas?R - A viragem neoliberal da Frelimo não foi de 94 [primeiras eleições livres], nem de 92 [acordo de paz de Roma]. O primeiro discurso de Samora Machel elogiando os comerciantes indianos é de 1982, e em 1985 dá-se a adesão ao FMI, ao Banco Mundial, à Convenção de Lomé. Só que as privatizações são a favor dos antigos directores de fábrica, os "comunistas", que se tornam em patrões privados. Isto é, o grupo social no poder continua exactamente o mesmo com a nova política. A Renamo nunca foi um partido em luta contra o comunismo. Isso é o seu discurso. Mas a Frelimo nunca foi comunista, e a Renamo não é contra o comunismo.P - É então contra o quê?R - Contra o grupo social do poder que produz fenómenos passivos de marginalização social. A Frelimo não é culpada de tudo. A mudança de capital da ilha de Moçambique para Lourenço Marques, por exemplo, fez com que o centro de gravidade do Moçambique histórico, que estava no Norte - na Zambézia, na ilha de Moçambique, no rio Zambeze -, fosse para o Sul, tornando os antigos núcleos da elite árabe-indiana, afro-indiana, afro-árabe, mestiça-crioula do Norte social, política, económica e mentalmente marginalizados. Devido ao seu antitribalismo e antietnicismo muito abstracto, a Frelimo nunca quis reflectir nisto e não travou. E às vezes piorou estes fenómenos de marginalizarão vindos da história portuguesa. Como toda a gente era moçambicana, não importava que a administração [local] fosse por exemplo changana [etnia acusada de monopolizar o poder]. Havia além disso uma vontade de controlar toda a gente. A criação do "homem novo" não é só discurso de Machel. É uma política concreta. As relações sociais originais no seio do campesinato não são coisas pertinentes para a Frelimo. As aldeias comunais, por exemplo. O seu fim não é colectivizar a produção. É concentrar as populações para as fiscalizar, pois o "habitat" disperso era algo inconcebível para a Frelimo. Só que se vive pior na aldeia comunal.P - Temos então um partido com uma génese exterior "pecaminosa" que se transforma e de algum modo responde a sentimentos das populações, que é a Renamo; e um partido geneticamente libertador e que se transforma em opressor, que é a Frelimo? R - Sim, há uma inversão de destinos e ela continua. Para mim, hoje, o antigo partido "marxista-leninista" é o melhor para os sectores mais modernos do capitalismo moçambicano, enquanto a Renamo, o antigo partido pró-"apartheid", de facto exprime uma realidade social daquilo que se pode chamar a "plebe". P - A Renamo pode ganhar as eleições de 2004?R - Pode. A Renamo conseguiu bem a sua "civilização", ao contrário da UNITA em Angola. Os seus soldados foram para casa. E talvez se tenha subestimado a componente civil. Mesmo no tempo da guerra havia uma ala civil: enfermeiros, professores, administradores, pessoal civil de "inteligência". Isso fazia com que a Renamo, nas suas zonas, não provocasse medo, ao contrário do que aconteceu em Angola. O grau do apoio sul-africano à Renamo foi sempre muito fraco. É falso dizer que a África do Sul lhe dava armas. Bastava ir tomá-las ao quartel da Frelimo em frente. A ajuda da África do Sul foi mais ao nível das telecomunicações e das deslocações de alguns quadros.P - O que é que a estadia de dois meses junto de Dhlakama acrescentou àquilo que o historiador precisava de saber?R - Não se pode perceber nada da guerra civil moçambicana sem ter uma profunda visão histórica que vem dos anos 30, 40, 50, num país que não é uma nação, formado por povos que têm muito pouco em comum e que não pode, por isso, funcionar com base numa política que favoreça uma região ou um estrato social. Em Moçambique, foi a Renamo; no Zaire, foi uma implosão completa; em certos países de cultura muçulmana, pode ser um surto de radicalismo islâmico. Quando há uma parte da população que não tem acesso aos benefícios do estado moderno, isso não só destrói o sentimento nacional, como provoca reacções antiestatais.P - Este processo de investigação no terreno em tempo real levantou alguma objecção nos meios académicos aqui em França?R - Em França não muito. Em Portugal e no pequeno grupo de académicos pró-Frelimo, fui acusado de ser um conselheiro pago de Dhlakama. A Renamo já tinha sido estudada. Mas de fora, e só com base em documentos sul-africanos, para os denunciar, ou em entrevistas de prisioneiros da Renamo que caíram nas mãos da Frelimo. Um académico de esquerda ir ver a Renamo e estabelecer uma relação de cordialidade com eles era um tabu metodológico. Do ponto de vista material e logístico, esta foi uma oportunidade única: visitei uma centena de cidades e aldeias, fiz não sei quantas pequenas entrevistas a cúpulas locais da Renamo...P - O historiador marxista Michel Cahen ficou a simpatizar com a Renamo?R - Não o escrevo no livro, mas vou dizer-lho: se eu fosse cidadão moçambicano em 1994, não votava nem na Frelimo nem na Renamo, mas provavelmente num dos pequenos partidos. Por exemplo no PCN [Partido da Convenção Nacional, fundado por Uria Simango, fuzilado pela Frelimo em 1977]. Mas é verdade, tem toda a razão num ponto: em 1994, eu tinha simpatia, não pela Renamo mas por aquele mundo da Renamo - os marginalizados, que ninguém ouve, que foram completamente humilhados. O chefe tradicional, por exemplo: é um coitadinho, pobre, pobre, não é ninguém. Eu não estou a favor da tradição. Mas não se pode construir o futuro negando as pessoas.P - "Os Bandidos" da versão francesa são transformados, na futura versão portuguesa, em "Os Outros". Quem quer enganar? R - Esta versão destina-se a um público (francês, algum inglês e americano) que não teve contacto directo com a tragédia. Em Moçambique, por outro lado, alguns perceberiam se o título fosse o mesmo [da versão francesa], mas outros iriam achá-lo de muito mau gosto. Seria o mesmo que fazer um livro sobre a Frelimo e pôr-lhe como título "Os turras" [abreviatura de terroristas, com que o regime designava os elementos da Frelimo]. "Os Outros" quer dizer os que não estão no centro, os que são marginalizados.

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