Internationale Sommer Akademie: Uma academia de Verão como uma espécie de utopia

O encontro geral estava marcado para as 15h de 23 de Agosto no "hall" de entrada da Künstlerhaus Mousonturm de Frankfurt. É o número 4 da Waldschmidstrasse, um competente e simpático edifício de cinco andares numa rua calma e bordejada de árvores no centro da cidade. No rés-do-chão um restaurante de iluminação suave, uma esplanada de mesas e bancos corridos - onde a qualquer hora do dia e da noite se bebe Apfelwein e se comem sopas e saladas - e uma sala para apresentação de espectáculos; no primeiro andar, um auditório mais pequeno; daí para cima, vários estúdios e salas para seminários onde a luz entra a jorros por vidraças que ocupam paredes inteiras. Durante oito dias será este o cenário para os trabalhos da 4ª edição da Internationale Sommer Akademie que, anualmente, desde 1999, se tem vindo a realizar no Mousonturm. "A verdadeira verdade sobre o quase real" foi o tema geral escolhido para este ano. Pesadas malas de viagem, algumas mochilas a transbordar, mas, sobretudo, subtis olhares curiosos à esquerda e à direita: os participantes começam a chegar pontualmente, alguns vindos directamente de aeroportos e estações de comboios e autocarros. É uma massa eclética de gente, talvez 80 pessoas, dos 20 aos 40 anos, entre artistas de todos os tipos (bailarinos, actores, encenadores, músicos, artistas plásticos...) e teóricos de vários géneros (professores universitários, historiadores de arte, críticos, ensaístas...). Toda esta gente - proveniente de quase todos os continentes, apesar de na sua maioria residentes na Europa -, a dividir por quatro grupos de trabalho para os três primeiros dias da academia e outros quatro para os últimos. Um dia de descanso pelo meio.Segundo o plano, diariamente, entre as 19h e as 20h, terá lugar uma série de conferências; sempre às 21h, suceder-se-ão espectáculos, de Meg Stuart, Hans-Peter Litscher, The Atlas Group ou dos Hygiene Heute; aos trabalhos teórico-práticos ficam reservadas nove horas diárias, a começar às 10h para terminar às 19h, a tempo das conferências. Todos o ficam a saber ao receber das mãos da organização um dossier informativo, espécie de bússola para os dias que se seguem.Uma hora depois do breve encontro o grupo dipersa-se pela cidade. Voltará a encontrar-se nessa mesma noite, para a abertura oficial da academia, a cargo de Jan Fabre, com uma conferência seguida da projecção de "A Consiliencie", um dos filmes-instalação que Fabre fez em parceria com Ilya Kabakov (foi apresentado em Portugal, no início do ano, na Sala do Veado, pela galeria Serpa Pinto). Trabalho de velocidade por vezes vertiginosa e assumidamente fragmentário, "A Consiliencie" dá continuidade à obsessão pela entomologia que tem marcado parte significativa da obra coreográfica e teatral de um autor "dedicado à criação do belo" - segundo o próprio diria na agendada conferência. Cinco minutos de apresentação que, como regularmente acontece, deixaram parte significativa da plateia perplexa ante uma indisfarçável (construída?) arrogância. Incipiente memória que as actividades a arrancar na manhã seguinte apagariam rapidamente.Para o terceiro dia dos trabalhos orientados pelo triunvirato formado pela coreógrafa norte-americana Meg Stuart, o português André Lepecki e o crítico alemão Gerald Siegmund, sob o tema "The Flesh of the Gaze", propôs-se aos participantes, divididos em grupos de quatro ou cinco, a apresentação de pequenas intervenções decorrentes das temáticas que, durante horas, nos dois dias anteriores se tinham vindo a discutir - sobretudo a partir de textos de Lacan e Merleau-Ponty. Muitos dos outros participantes partilharam a sua vontade de fazer uma quebra na habitual rotina de trabalho. É o caso, por exemplo, de Sonja Augart, que recentemente passou por Portugal como elemento do corpo de intérpretes de "The Show Must Go On", do coreógrafo francês Jérôme Bel - era a rapariga alta de cabelo preto, curto, que não parava de se vestir e despir, lembram-se? Encontramo-la numa improvisação colectiva do grupo de trabalho dirigido pelo encenador Tim Etchells e o escritor e dramaturgo Adrian Heathfield.Mas as razões de participação na academia são tão diversas como as pessoas envolvidas. Há, por exemplo, quem explique desejar aproveitar os resultados das sinergias colectivas para o desenvolvimento de trabalhos pessoais, desde teses sobre um ou outro criador a pesquisas com temáticas similares àquelas exploradas por este ou aquele orientador deste ou daquele grupo de trabalho - é o caso de uma tímida mas decidida universitária californiana cujo nome se perde na algazarra de um fim de dia. E resta um dado a não descurar: o facto de esta ser uma oportunidade, eventualmente única, para estar em estreito contacto (e confronto) com alguns dos mais interessantes nomes do pensamento e criação contemporânea, nomes tão singulares como os já referidos Meg Stuart e Tim Etchells, mas também William Forsythe, Harun Farocki, Martha Rosler ou Xavier Le Roy. Depois de um dia de descanso - que muitos aproveitaram para uma visita relâmpago à histórica exposição "Documenta" de Kassel, a cerca de 300 quilómetros de Frankfurt -, retomam-se as actividades. Com a dupla Xavier Le Roy/Jan Kopp, sob o tema "Copy me...Don't copy me", o dia começa com toda a gente sentada em círculo, um monte de folhetos que cai do tecto e uma voz que diz "começámos". Nenhuma explicação é feita; os participantes ficam entregues a si mesmos e à sua iniciativa pessoal - há quem se irrite, quem levante o sobrolho, quem opte por ir fumar para a janela ou beber café, e quem, sem hesitação, se entregue a um encadeado de actividades peculiares, desde roubar e usar sapatos alheios a mimetisar os gestos dos outros; a curiosidade vence, ninguém abandona a sala. Com Nikolaus Hirsch e Markus Weisberg, horas após anunciar publicamente o abandono do Ballet de Frankfurt a partir de 2004, William Forsythe optou por levar o seu grupo a trabalhar no jardim zoológico local, na tentativa de elaborar e, posteriormente, pôr em prática uma série de fórmulas matemáticas correspondentes ao tema "Mimese". A dupla Harun Farocki/Diedrich Diederichsen dispôs, pela manhã, de uma sala de cinema no Mahl Seh'n Kino para a projecção em 35mm dos três filmes que serviam de base de trabalho ao seu grupo ("Time Code", de Mike Figgis, "Beau Travail", de Claire Dennis, e "The Fury", de Brian De Palma). À tarde, em vídeo, cada sequência foi analisada, quase dissecada, em cada uma das suas implicações estético-formais. Entretanto, pelas escadas e salas de computadores, à hora de almoço, no restaurante do Mousonturm, e à noite, nas festas organizadas para cada pós-espectáculo, a palavra sobre o que ia acontecendo em cada um dos grupos corria célere. Por geração espontânea, surgiu uma verdadeira rede de informação, afinidades e fricções, mas também projectos para futuras colaborações. Diria Hans-Ulrich Obrist, numa conversa com os programadores da academia que acabou por integrar o catálogo do evento, entre textos de vários participantes, dizia: "Eu acho que as conferências e academias mais eficientes acontecem nas pausas do café. É o tipo de situação tudo-pode-acontecer-uma-vez-que-nada-tem-que-acontecer". Confirma-se. É verdade, apesar de, felizmente, não toda a verdade. O sueco Marten Spangberg, que concebeu o conceito para esta 4ª edição da Sommer Akademie, é, contudo, um grande defensor da criação dessa espécie de territórios de ninguém."Interessei-me pela ideia de uma academia em que não há sessões, no sentido de workshops. Não há mentores, professores, programa. A ideia era reunir cerca de oitenta participantes e outras vinte pessoas com conhecimentos e interesses especiais. Juntos deveriam criar um organismo que viveria a sua própria vida. Cada um deveria investir nos seus próprios interesses e criar algo de desconhecido."Este foi o ponto de partida de Spangberg - "uma academia como uma utopia". Entre as dezenas de viagens-relâmpago que anualmente realiza, sobretudo na Europa, para comissariar este ou aquele evento, trabalhar como intérprete ou dramaturgo e escrever colaborações para diversas revistas internacionais - é o verdadeiro "Jack-of-all-trades" com um currículo impressionante para os seus 34 anos -, discutiu a sua proposta com os restantes dois programadores do evento (Christine Peters e Florian Malzacher). Spangberg (o mesmo que em Portugal foi convidado a integrar a equipa que recentemente reformulou os históricos mas enfraquecidos Encontros Acarte, transformando-os no evento ainda em curso "Capitals", do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian), viu-se, no entanto, obrigado a fazer concessões. Fez vingar uma noção essencial: a ideia de não se procurar transmitir "uma espécie de conhecimento canónico deste ou aquele criador ou teórico, antes que um grupo de gente com ferramentas e percursos distintos aborde em conjunto um mesmo tema para, idealmente, se chegar à 'produção de conhecimento'", sendo, portanto, cada participante escolhido responsável pelo sucesso global dos trabalhos, tanto mais produtivos quanto mais riscos forem assumidos. Quanto ao que sobra da sua ideia original fica, em princípio, reservada para 2003. Para quem se sinta aliciado, a academia está em www.internationale-sommerakademie.de.

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