bandas sonoras de Bombaim

A música para filmes de Bollywood é um mundo. Um "star system" com protagonistas que vendem mais discos que Madonna ou Britney Spears. Primeiro é o "kitsch" que nos atrai, depois confirmamos que as aparências iludem. É um "admirável mundo novo".

Numa primeira análise, a música dos filmes indianos é "kitsch", bizarra. Numa segunda linha, também. Mas a exposição prolongada ao contacto com o que é designado como "piroso" pode vir a provocar efeitos secundários curiosos. Relembremos o "hype" provocado pela explosão da "música pimba". Ou a histeria nacional de O Clone. A vulgaridade encontra eco na nossa vulgaridade e depois é necessário arranjar explicações autojustificativas para o gosto. Afinal, basta abandonarmos os subterfúgios e assumir os gostos e, se for caso disso, discuti-los. Ou apresentá-los como dogma pessoal. E pronto. Não gostamos de música pimba, nem conseguimos vislumbrar interesse na telenovela brasileiro-marroquina (preferimos as venezuelanas e mexicanas dobradas). Mas no caso das bandas sonoras de Bollywood, o caso muda de figura. Existe a tal dimensão primária, mas também suficientes pérolas para insistir nas toneladas de discos e cassetes piratas que diariamente são gravados em Bombaim. Absorvido e assumido o lado aparentemente foleiro da coisa, deparamos com um manancial de substância e informação que vale a pena desvendar. Por exemplo, "The Very Best Bollywood Songs", colectânea de 15 das canções mais representativas, verdadeiros clássicos, dos filmes indianos. Inicia-se com "O Saathi Re", interpretada pela lendária Asha Bhosle, imortalizada no Ocidente pelo "hit" "Brimfull of Asha" dos Cornershop. É um exemplo do que verdadeiramente importa na música indiana. Gravado em 1978 para o filme "Muqaddar Ka Sikandar", lembra "Can't Take My Eyes of You", mas poderia ser confundido com qualquer canção de amor da Motown. Começa com um dedilhar solitário de piano de melodrama mudo, para, de seguida, arrancar com um ritmo de balada pop-soul-funky psicadélica suportado por tablas, bateria, baixo, engalanada com acordes de guitarra, cítara e órgão. A melodia é conduzida pela voz cristalina de Asha e por um naipe de violinos sentimentais, vibrantes e xaroposos. Depois, há alternância de protagonismo dos instrumentos, com espaço para um mini-solo de clarinete, outro de violino, um "flash" de acordeão e um coro que parece resgatado a "Hair". É impossível não gostar. O resto do disco é mais fraco em termos de resultados finais, mas igualmente exuberante no que diz respeito a multidimensionalidade sonora, arranjos e orquestrações. Há influências de rai magrebino, flamengo, música cigana e, quiçá, Demis Russos, country com balalaika, citações de "western spaghetti", ritmos andinos e easy-listening, jazz e elementos latino-americanos, disco-sound ao melhor estilo dos Abba, batidas apontadas às pistas de dança, pop FM em tom de baladinha romântica. à escala global. A partir deste caleidoscópio, podemos extrapolar que a grande qualidade dos compositores indianos é a sua capacidade de se abrirem ao mundo e absorverem todos os estímulos que daí provêm e, depois, integrá-los na música que fazem. Os seus temas têm sempre em conta o público a que se destinam e por isso uma construção formal que remete para estilos (raga, bhangra, ghazal) e instrumentos (cítara, tablas) tradicionais é indispensável. Depois, entra a criatividade em acção, e uma fabulosa capacidade de harmonizar todo e qualquer género, apostando nas mutações rítmicas e melódicas e na utilização do maior número de instrumentos e sons possíveis, como se a sua vida dependesse disso. O fabuloso "Bollywood Funk" é um excelente exemplo da conjugação de eclectismo com imaginação e surpresa. Como o título indica, o funk é o denominador comum, mas mais uma vez as abordagens estéticas são infinitas. Da tradução do imaginário das bandas sonoras dos "blaxploitation movies" para o equivalente indiano "brownsploitation" à composição de ambientes de policial, "thriller", dramas, acção, aventuras, artes marciais ou "on-the-road", onde o jazz, soul, pop, rock, mambo, psicadelismo, electrónica, música africana, latina ou "surf music" se cruzam entre "hare krishnas" e "baby, I love you" (sim, há temas em inglês e também bilingues) descobrem-se almas gémeas de John Barry, Lalo Schifrin, Maurice Jarre ou Enio Morricone, mas também de Raymond Scott, Supremes, Beach Boys ou Beatles. Por vezes, nas semelhanças surgem suspeitas de plágio. Mas não se passa nada para além de recontextualização das fontes de inspiração. O mesmo processo que catalisou o desenvolvimento e autonomização do reggae e dub, hip-hop ou da música de dança. O mesmo que motivou Dan "The Autormator" Nakamura e DJ Shadow a mergulharem na matéria-prima da autoria dos irmãos Kalyanji e Anandji Shah para fazerem o mítico, e quase impossível de encontrar, "Bombay The Hard Way", que integra temas tão sugestivos como "The good, the bad and the chutney", "Ganges a go-go", "Fists of curry", "Punjabis, pimps & players" ou "Fear of a brown planet", e já foi objecto de sequela, "Bombay 2: The Electric Vindaloo". Num comprimento de onda semelhante, mas partindo de uma perspectiva ocidentalizada de utilização deste património riquíssimo (e também o inesgotável acervo da música indiana tradicional e clássica), temos assistido à eclosão do "british asian underground", há muito transformado em "mainstream", onde pontificam Cornershop, Talvin Singh, Nittin Sawhney, Ananda Shankar, Bally Sagoo, Asian Dub Foundation, Anjali... São sinais do alcance da música de "Bollywood" e a sua implantação à escala global. Se somarmos o mercado indiano com o indonésio, paquistanês e iraquiano, com a penetração crescente na Grã-Bretanha, é fácil perceber que esta é a música mais ouvida no planeta. Não será por acaso que os Basement Jaxx, no vídeo de "Romeo", se colaram à iconografia de Bollywood; que Andrew Lloyd Weber montou um musical em Londres, "Bombay Dreams". Ou que o segundo volume da compilação "The Very Best Bollywood Songs" conseguiu entrar no "top" 30 dos álbuns mais vendidos em terras de Sua Majestade. Neste "admirável mundo novo" existe um "star system" a abarrotar de vedetas e escândalos capazes de fazer inveja aos artistas ocidentais. No que diz respeito aos denominados "cantores de playback" (os que de facto cantam nos "playbacks" encenados pelos actores e actrizes), destacam-se as lendárias irmãs Asha Bhosle e Lata Mangeshkar (esta última, desde os anos 50 já gravou mais de 50 mil canções e detém o recorde do Guiness). Mas na lista sucessória há novos talentos já confirmados, como Kavita Krishnamurty Subramaniam ou Alka Yagnik. No contingente masculino, são cabeças de cartaz o decano Kishore Kumar, Kumar Sanu (recorde do Guiness para maior número de canções gravadas num dia, 28) ou Udit Narayan. No domínio da composição, S. D. Burman e o seu filho, R. D Burman (também conhecido como Pancham), Madan Mohan ou as duplas Laxmikant-Pyarelal e Shankar-Jaikistan são referências com carreiras de décadas e de êxitos. Actualmente, o estrelato é dominado por nomes como Nadeem-Shravan e Jatin-Lalit (mais duas duplas) ou Anu Malik, sendo o rei incontestado A. R. Rahman, que vende mais discos que Madonna e Britney Spears juntas. É co-autor do musical "Bombay Dreams" e já gravou um single com Michael Jackson.Bem-vindos a Bollywood, século XXI.

Sugerir correcção