Acabar com o frenesim constitucional e debater a Europa

Aprovada em 2 de Abril e entrada em vigor em 25 de Abril de 1976, a Constituição sofreu até hoje cinco revisões constitucionais - em 1981-1982, 1987-1989, 1992, 1996-1997 e 2001.Que tenha havido revisões constitucionais deve ter-se por perfeitamente natural. É o que sucede com qualquer Constituição, por força da mudança de condicionalismos políticos, económicos e sociais, das exigências de adaptação jurídica e da própria conveniência de aperfeiçoamento dos textos. Por toda a parte isso se verifica.E que tenham sido cinco revisões em 26 anos, se é muito em confronto com quatro Actos Adicionais à Carta Constitucional em cerca de 70 anos ou com vinte e seis Aditamentos à Constituição dos Estados Unidos em mais de 200 anos, em contrapartida não é demasiado em confronto com cinco revisões em 15 anos da Constituição de 1911 ou com nove em 41 anos da Constituição de 1933.O que surpreende, sim, e provoca não pouca perplexidade é a extensão das revisões constitucionais, salvo a de 1992 (suscitada pelo tratado de Maastricht) e a de 2001 (suscitada pelo estatuto do Tribunal Penal Internacional). Extensão quanto ao tempo gasto para serem levadas a cabo e quanto ao número de alterações aprovadas (muitas destas complexas e desdobradas em mais de um preceito).Assim:- A revisão de 1982 ocupou 17 meses e mais de uma sessão legislativa;- A revisão de 1989 abrangeu 21 meses e duas sessões legislativas completas;- A revisão de 1992, cinco meses e meio;- A de 1997, cerca de 20 meses, cobrindo duas sessões legislativas;- Finalmente, a revisão de 2001 - oito mesesTudo soma 11 meses e quase 6 anos, em 26 anos de vigência da Constituição.Poderia acrescentar-se a frustrada revisão, desencadeada em 11 de Julho de 1994 e encerrada com o termo da VI legislatura em 15 de Outubro de 1995. É demais!Por seu turno, as alterações aprovadas viriam a ser:- 237 em 1982- 201 em 1989- 7 em 1992- 192 em 1997- 6 em 2001A revisão de 1997 chegaria ao extremo de, em coisa nunca vista em parte alguma do mundo, modificar a numeração de mais de 150 artigos (do art. 92º ao art. 262º).O muitíssimo tempo dispendido e o menor interesse de tantas das alterações constitucionais debatidas e aprovadas, sobretudo em 1989 e em 1997, permitem sustentar que foram superiores os custos às vantagens, que elas se traduziram numa desproporção entre uns e outros.Basta recordar a atenção concentrada nos processos de revisão em detrimento da actividade legislativa normal da Assembleia da República, no arrastar do contraditório político à espera do termo desses processos, no arrastar dos processos negociais entre os dois partidos centrais do arco parlamentar indispensáveis para a maioria da revisão, nas clivagens abertas em cada um e na relativa marginalização dos restantes. E isto ainda sem considerar os acordos interpartidários então impostos aos Deputados que tanto têm contribuído para a degradação da sua autonomia e dignidade e da dos respectivos grupos parlamentares.Por outro lado - e algo curiosamente, tendo em conta as críticas dirigidas por alguns sectores ao texto de 1976, acusado de regulamentário e multitudinário - as revisões têm vindo a aditar mais e mais preceitos (números, alíneas), a despeito dos artigos terem baixado de 312 para 299. E, por essa via, a Constituição, carregada de cada vez de normas não exequíveis por si mesmas, vai-se engordando e tornando flácida e redundante.Mas, mais importante do que tudo, avulta a instabilidade das normas constitucionais, com custos pesadíssimos para o trabalho dos operadores jurídicos e para a segurança e confiança dos cidadãos.Este frenesim constitucional resulta de certo juridismo exacerbado e de certo positivismo difuso entre nós. Provém das fraquezas culturais da classe política que, em vez de governar e administrar, prefere legislar e que, em vez de reformas legislativas, opta por revisões constitucionais. Explica-se outrossim pela sede de protagonismo de alguns agentes políticos que, não tendo estado presentes na Assembleia Constituinte, agora dir-se-ia quererem refazer a Constituição (como se tal fosse possível, por uma Constituição nova só se fazer em precisos momentos de viragem histórica!).Mas esse fenómeno também tem não pouco que ver com a deficiente leitura da norma constitucional que consente revisão constitucional ao fim de cinco anos após a anterior revisão (ou desde a última revisão ordinária após a alteração introduzida - de resto, sem necessidade - em 1992).A norma é, sem a menor sombra de dúvida, meramente permissiva: permite, não obriga a que se realize revisão. Ao invés, tem sido entendido na prática como a determinando; e determinando, inclusive, uma revisão global (algo parecida à revisão total que, em alguns países, só se concebe ao fim de transcorridas muitas décadas, como ainda há três anos sucedeu na Suiça). E os partidos lançam-se, logo, gostosamente, no entretenimento de mexer na Constituição.Se a revisão de 2001 foi, como se sabe, relativamente limitada, muito ambiciosa tinha sido a de 1997, feita sob o lema da reforma do sistema político. Ora, cinco anos volvidos, o que resulta dessa reforma?Tirando novas leis de referendos nacionais e locais, sobre a participação de cidadãos residentes no estrangeiro na eleição do Presidente da República e sobre candidaturas independentes nas eleições para o poder local, pode dizer-se que tudo continua na mesma, sem que importantes normas constitucionais viessem a receber a necessária concretização legislativa.É esse o caso das normas que apontam para a igualdade de acesso de ambos os sexos aos cargos políticos (arts. 9º, alínea h e 109º), das que impõem a democracia interna e um novo regime de financiamento dos partidos (art. 51º, nºs 5 e 6), das que abrem caminho à reforma dos sistemas eleitorais respeitantes à Assembleia da República e aos orgãos executivos das autarquias locais (arts. 149º e 239º, nº 3), das que prevêem a pronúncia da Assembleia da República acerca de actos normativos das Comunidades Europeias e acerca do envolvimento de contingentes militares portugueses no estrangeiro (arts. 161º, alínea n e 163º, alínea j), da que contempla a iniciativa legislativa popular perante a Assembleia da República (art. 167º, nº 1) e da que estabelece referendos regionais (art. 232º, nº 2).Nem sequer, por outro lado, a Assembleia da República até agora procedeu à revisão do seu regimento para o adaptar às alterações constitucionais e para racionalizar e agilizar os seus procedimentos decisórios, com o relevo indispensável das comissões.Somente há semanas, após o início da nova legislatura, foi posta a funcionar uma comissão eventual para a reforma do sistema político, ma cuja actividade poderá ficar completamente subalternizada ou frustrada se for desencadeado em Setembro ou Outubro um novo processo de revisão constitucional.O programa legislativo do actual Governo é vasto e, como não podia deixar de ser, controverso em muitos pontos. Os Deputados cumprirão, pois, as suas obrigações para com os seus eleitores se se debruçarem com serenidade, com aprofundamento e com tempo sobre reformas tão importantes como as da segurança social, do serviço nacional de saúde, do estatuto do estudante ou do desenvolvimento do ensino superior. Interessa isso aos portugueses muito mais do que discutir a criação de um Senado, a extinção do Ministro da República ou a cláusula sobre a forma republicana do governo.Mas se preferem voltar-se para questões político-institucionais, então terão uma que sobreleva largamente a questão da revisão da nossa Constituição: é a questão da reforma das instituições da união Europeia, tendo em conta a "convenção" que está preparando um anteprojecto de novo tratado (que alguns pretendem que seja já uma "Constituição europeia").Essa reforma - coincidente e correlativa com o alargamento da União a vários países da Europa central - poderá ter gravíssimas repercussões no lugar e no peso de Portugal dentro dos orgãos comunitários, assim como em algumas prerrogativas de soberania a conservar ou a reformular. Estão em causa a igualdade entre os Estados membros da União e a capacidade dos Estados pequenos ou médios como Portugal de defenderem os seus interesses políticos, económicos e culturais (designadamente, o papel inalienável e inegociável da língua portuguesa, como língua oficial da União em paridade com as demais).Não deveria haver mais e melhores debates parlamentares sobre a Europa?. Não deveria ser constituída uma comissão eventual para acompanhamento dos trabalhos da "convenção"?. Em vez de revisão permanente da nossa Constituição, não seria a altura da Assembleia da República se empenhar mais intensamente, nos procedimentos respeitantes a decisões comunitárias, sob pena de se esvaziar de muitas das suas competências?.*Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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