Em nome do filho

"Filhos dum pai morto: A britânica Diane Blood teve o seu segundo filho com esperma do marido falecido."; "O primeiro bebé clonado deverá nascer em Dezembro: a criança, resultado dum embrião obtido por clonagem e transferido para o útero materno, será o gémeo do seu pai"; "Banco de esperma para lésbicas"... - estes e outros títulos surgidos recentemente, em diferentes jornais, dão conta das diferentes versões que a ciência tem dado a uma questão que não é de modo algum de agora: os riscos que as pessoas estão dispostas a correr para terem um filho a que possam chamar seu. As pessoas sempre estiveram dispostas a tudo para terem um filho. O que tem mudado, ao longos dos tempos, são as variantes que se encerram nesse tudo. Hoje os tratamentos contra a infertilidade e a engenharia genética apenas nos obrigam a interrogarmo-nos de novo sobre os limites do direito a ter um filho. Durante séculos, nas mais diversas civilizações, existiram crianças que foram raptadas, compradas, acolhidas, adoptadas... para serem tratadas como filhas de famílias que não eram as suas. No próprio dia em que escrevo esta crónica é notícia o rapto dum recém-nascido no Hospital de Guimarães por uma jovem mulher. Se esta história tiver o desfecho doutras similares (e assim o desejarão veementemente todos aqueles - e muito especialmente todas aquelas mulheres - que um dia tiveram um filho recém-nascido nos braços) seremos confrontados, mais cedo ou mais tarde, com a história de alguém que queria muito ter um filho e não podia. Alguém que provavelmente se declararia disponível para amar uma criança tanto ou mais do que qualquer mãe biológica ou adoptiva.Mas entre quem adopta uma criança e entre quem rapta ou compra o filho que não pode ter existe uma diferença que nada pode apagar: o respeito pela criança. Quem rapta uma criança para fazer de conta que ela é sua filha, não a respeita. E é esta mesma falta de respeito pela criança que encontramos em várias das opções que a engenharia genética e as técnicas de reprodução medicamente assistida possibilitam neste momento a quem considera que o seu direito a ser pai ou mãe se sobrepõe aos direitos da criança. O facto de a ciência permitir, por exemplo, que uma mulher com problemas de fertilidade fique grávida não legitima que, para garantir o sucesso da reprodução medicamente assistida, seja criada uma gravidez de cinco gémeos como recentemente aconteceu em Portugal. Não só as crianças acabaram a falecer como, logo à partida, se colocou em risco a vida duma mulher, por sinal mãe duma criança.Igualmente o facto da engenharia genética permitir que homens completamente estéreis sejam pais não legitima que eles o sejam porque as crianças nascidas através dessa técnica seriam o clone do pai. E quando escrevo 'seriam' estou provavelmente a incorrer em erro: "Entre os meus pacientes, 50 casais, que sofrem de infertilidade masculina total, ofereceram-se como voluntários para um programa de clonagem. Já efectuei 18 transferências de embriões criados por clonagem. E já obtive uma gravidez. Ela está já na décima quinta semana. O feto tem uma boa morfologia." - declarou o professor Severino Antinori ao jornal francês "Libération" no início deste mês de Julho. Ou seja em Dezembro deste ano deverá nascer o primeiro clone humano. Entretanto Severino Antinori avisa que será necessário submeter a criança a uma série de testes para avaliar do sucesso ou do insucesso da técnica usada e conclui que só após terem nascido várias crianças por clonagem se poderão tirar reais conclusões. Mas é quando a jornalista do "Libération" pergunta "As experiências de clonagem com animais revelam que existem riscos de que a criança venha a ficar doente, a curto ou médio prazo. Enquanto médico, isto deve preocupá-lo fortemente?" que Antinori revela o lado mais inquietante da sua prática clínica: "Eu estou convencido de que há menos riscos para o homem do que para os animais. No início da fecundação 'in vitro' tivemos mais fracassos entre os animais do que entre os humanos. Será semelhante com a clonagem. E afinal, a vida é um risco." Certamente que sim. Mas, no caso, para quem? Não para o doutor Severino Antinori cuja clientela dos Emiratos Árabes está disposta a pagar bem para ver nascer o filho, provavelmente varão, tão desejado. Tal como se manifestaram disponíveis para lhe pagarem o que fosse necessário as mulheres pós-menopáusicas que resolveram ter filhos na idade em que deviam ser avós pois convém recordar que Severino Antinori se tornou conhecido por, em 1994, ter proporcionado uma gravidez a uma mulher de 63 anos. Também não será um grande risco a vida para esses casais que procuram libertar-se do estigma da infertilidade e que acreditam que a sua realização não depende deles próprios mas sim duma criança.Neste caso a vida é um risco para a própria criança. A tal tão hipervalorizada. A tal de quem parece depender a felicidade e a razão de ser de toda uma família. A tal que se não corresponder às expectativas corre o risco de ser posta de lado como brinquedo caro que se avariou. Segundo Antinori a sua equipa terá de manter a criança em sua posse durante algum tempo após o parto para determinar o seu estado de saúde. Se apresentar deficiências é rejeitada? Quem, nesse caso, fica com ela? Independentemente do que pensemos sobre a clonagem ou a reprodução medicamente assistida, convém que se reflicta quer sobre o direito a ter um filho quer sobre a mitificação da felicidade que as crianças trazem aos casamentos ou à vida de cada um. As crianças não são prestadoras de serviços de felicidade e realização a gente que não sabe o que há-de fazer com a vida. Ter um filho não é de modo algum resolver a nossa vida. É, antes pelo contrário, dar vida.

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