Na América desesperada de John Steinbeck

Muitos ensaios já se escreveram sobre "As Vinhas da Ira", de John Steinbeck. Muitos foram os críticos literários que se demoraram a analisar o poder simbólico de uma obra que se assume hoje como um clássico do século XX, um retrato realista e inquietante de uma América rural, vergada ao poder dos grandes proprietários, mergulhada na miséria e no desespero. Mas "As Vinhas da Ira", publicado em 1939, no culminar de uma das mais difíceis décadas da história dos Estados Unidos, pode evitar as interpretações de contornos filosóficos ou bíblicos - há quem encontre paralelos óbvios entre a viagem empreendida pelos Joad e alguns dos episódios do Livro do Êxodo, em que se narra a fuga do Egipto em direcção à Terra Prometida - e ser lido num registo próximo do documental, género que Steinbeck procurava privilegiar. Nas estradas poeirentas entre Oklahoma e a Califórnia, uma família de camponeses que viu a força do seu trabalho substituída por modernos tractores e foi obrigada a abandonar as terras que arrendava há mais de 50 anos, procura uma nova vida. A seu lado estão milhares de migrantes que se deslocam pelos mesmos motivos, em velhos camiões, em direcção a um futuro incerto que, apesar de sucessivos esforços, não puderam adiar nem evitar.Em cada um dos membros da família Joad e das figuras que lhe são associadas - Muley Graves, o vizinho que duvida da sua própria sanidade e é perseguido pelas autoridades por se recusar a abandonar a sua quinta, ou Jim Casy, um pregador que renunciou ao ofício por ter perdido a vocação e não ter conseguido evitar apaixonar-se por algumas das mulheres que pretendia salvar -, John Steinbeck traduz alguns dos tipos sociais que encontrou em 1936, ao viajar pelos campos de migrantes da Califórnia, recolhendo material para aquela que seria uma das suas mais acalmadas obras, objecto de uma adaptação cinematográfica dirigida por John Ford.Num estilo muito peculiar, em que a odisseia dos Joad é interrompida por capítulos em que se analisa a situação externa que lhe serve de contexto, o autor traça um retrato crítico que vive da exposição de situações extremas, em que a humanidade das personagens é posta à prova no mais simples dos gestos, no mais desesperado dos cenários. A família de camponeses e Jim Casy partem para a Califórnia, dispostos a atravessar o deserto, sem descanso, em direcção a um território onde esperam encontrar trabalho e uma nova casa. Deixam para trás a quinta, o lugar de pertença que os define, a terra que, segundo Ma Joad, a matriarca, os une. Há em "As Vinhas da Ira" uma preocupação com o pormenor, sobretudo no que toca às relações humanas. Nos corpos que vão ficando para trás (os avós morrem pelo caminho, o filho de Rose de Sharon nasce morto, Jim Casy é assassinado por um polícia), nas crianças que procuram alimentar num dos acampamentos, nos vizinhos que confundem a solidão com a loucura, nas raparigas que convidam para dançar num baile que já julgavam improvável, há uma solidariedade evidente, uma ternura subentendida, omnipresente. Num dos eixos centrais da acção encontra-se Tom, o filho de Old Tom Joad e de Ma Joad, um homem condenado por homicídio que se encontra em liberdade condicional depois de cumprir quatro anos de pena. É Tom quem, admirando os ideais do ex-pregador, parte para se juntar aos que lutam pelos direitos dos trabalhadores e pela distribuição mais igualitária da riqueza, dispostos a contrariar a injustiça, a opressão dos grandes proprietários, os abusos da força e a humilhação a que constantemente os camponeses se sujeitavam.Depois de assassinar, "por instinto e necessidade", o guarda que matou Casy, Tom é obrigado a afastar-se da família, escondendo-se num salgueiral em torno de um riacho. É aí perto, numa cavidade coberta de vides, que Tom e a mãe se encontram, antes da sua partida. Entre os dois estabelece-se um diálogo que valeu a Steinbeck muitos rótulos políticos (uns chamaram-lhe socialista, outros comunista) e alguns problemas com as autoridades de Oklahoma. "Onde quer que se lute para que a gente com fome possa comer... eu estarei presente. Onde quer que a polícia esteja a bater num tipo, eu estarei presente. Estarei onde quer que se vejam criaturas a gritar de raiva... e estarei onde as crianças sorriam porque têm fome mas saibam que a ceia não tarda. E quando a nossa gente comer aquilo que plantar e morar nas casas que construir... então também eu estarei presente", garante Tom. Em "As Vinhas da Ira", Steinbeck explora uma das suas principais influências: a teoria da interdependência de todas as formas de vida, que lhe foi incutida por um especialista em biologia marítima que conheceu na faculdade, Edward Ricketts. É na voz de Tom Joad, citando o pregador, que melhor se refere a uma noção de povo, um conceito que lhe é caro já que para o autor todo o indivíduo se define pela interacção com tudo o que o rodeia, seja outro homem ou um pedaço de terra. "Casy costumava dizer", relembra o filho dos Joad, que cada um tem uma pequena parte de uma alma enorme, "ele achava que não servia de nada andar em sítios desertos, porque aí, a tal pequena alma que ele tinha não servia para nada. Só tinha utilidade quando estava junto das outras com que formava um todo."Tecendo duras críticas à sociedade do seu tempo - a dada altura, Tom refere-se ao Governo como uma entidade que parece interessar-se mais pelos mortos que pelos vivos -, Steinbeck recorre a um realismo astuto e lancinante, que vive de pormenores. Nas longas descrições, de uma minúcia fotográfica, o escritor cria ambientes quase palpáveis. Na cena final do romance, provavelmente uma das mais inquietantes, Rose de Sharon, que acabou de perder um filho, amamenta um homem que está prestes a morrer de fome. Num velho casebre, sob uma chuva intensa, o destino dos Joad é deixado em aberto. Steinbeck volta, assim, a provocar o leitor, depois de o confrontar com uma série de situações extremas em que o ser humano se revela em toda a sua magnitude. Inconformados, corajosos, solidários e, sobretudo, "lutadores" (o autor gostava da palavra), os Joad são o símbolo de uma América que não se rende, que prefere entregar-se a um futuro incerto que conformar-se com um presente de miséria, em que a integridade parece já não valer a pena. Apesar dos valores do optimismo, John Steinbeck recorre a esta obra que deu um impulso decisivo a uma série de reformas na política agrária norte-americana, para deixar um recado claro aos que continuavam a queimar ou a deixar apodrecer as colheitas, condenando milhares à fome, para manter os preços em alta: "Nos olhos dos esfaimados cresce a ira. Na alma do povo, as vinhas da ira crescem e espraiam-se pesadamente, pesadamente amadurecendo para a vindima."

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