"Douro, Faina Fluvial" exibido na coração do vale

A noite estava um pouquinho ventosa, mas não era motivo para acender uma lareira. As labaredas que se soltavam acima do rio Douro, na fluvina da Rede, em Mesão Frio, não estavam ali para aquecer corpos, pareciam antes simbolizar algo com outra espessura espiritual. Uma espécie de convocação dos homens para um ritual. O fogo tem esse lado mágico, mas, no caso concreto, a fogueira destinava-se apenas a uma simples sardinhada. Quem diria: 71 anos depois de ter sido estreado, o filme-documento de Manoel de Oliveira, "Douro, Faina Fluvial" foi finalmente exibido no coração do vale e os durienses celebraram com sardinhas e vinho. Os lisboetas, na altura da estreia, em 1931, reagiram com pateadas. Não gostaram, porque não entenderam nada. Luigi Pirandelo, o crítico e dramaturgo italiano que assistiu à exibição, ficou pasmado e interrogou-se mesmo sobre se os portugueses tinham o hábito de aplaudir as obras de arte com os pés!... Anteontem à noite, na fluvina da Rede, apareceram cerca de 250 pessoas para assistir à projecção daquela que foi a primeira obra de Manoel de Oliveira e prestar homenagem simbólica a um cineasta - ausente da sessão, por se encontrar em trabalho, em Paris - que tem elevado o Douro à categoria de lugar mítico. A exibição decorreu ao ar livre, mesmo junto ao rio, num cenário perfeitamente adequado à importância e significado do acontecimento.A ideia de projectar "Douro, Faina Fluvial" numa terra de barqueiros e pescadores era, só por si, aliciante. Mas o programa incluía ainda uma mesa-redonda com homens ligados ao rio e familiares de antigos arrais. A noite prometia um regresso ao passado épico do Douro. Primeiro, através das imagens pictóricas de um filme realista que retrata o fervilhar da actividade ribeirinha do Porto no final do primeiro quartel do século passado, o vaivém dos barcos, o rosto sofrido do trabalho pesado, a alegria dos simples, a aldeia no meio da grande cidade, o rio imenso e ao mesmo tempo tão pequeno e familiar. Depois, pelo desfiar da conserva em torno de memórias passadas no rio, das viagens de três dias que um barco rabelo precisava para chegar ao Porto, umas vezes com 25 ou 30 pipas de vinho generoso, outras com azeitona, fruta ou combustíveis vegetais para as panificadoras de Vila Nova de Gaia. E também dos naufrágios e da morte. Hoje, já raramente se morre no Douro. O rio, outrora tortuoso e traiçoeiro, amansou com as barragens e transformou-se numa toalha de água, por onde deslizam suavemente barcos carregados de turistas. Mas a noite de anteontem, apesar do seu simbolismo, não esteve ao nível das expectativas. Foi exaltante visionar o Douro do Porto de 1931 na margem do Douro vinhateiro em 2002, sentir no remanso do rio a emoção retida de alguns dos presentes e ouvir a escaparem-se pelo vale as gargalhadas de outros. E caíram bem as palmas que se ouviram no final do filme. Mas houve cortes a mais no som e nem Manoel de Oliveira se lembraria de manter três pessoas numa mesa-redonda a falar às escuras para a assistência. Como alguém anotava, a cena, de tão burlesca, ia melhor com Buñuel. Não havia luz exterior e o único foco que, de vez em quando, incidia sobre a tertúlia era o da câmara da RTP. O que podia ter sido uma conversa interessante transformou-se num diálogo arrastado, penoso, com o animador, Elísio Neves, um dos elementos da equipa do Museu do Douro, a levar longe de mais o seu papel. Esperava-se que fossem os homens do rio a contar histórias, mas foi Elísio Neves quem revelou os seus conhecimentos sobre a faina fluvial no Douro. É verdade que José dos Anjos, de 80 anos, filho de um antigo barqueiro duriense, tinha pouco para contar. Lembrava-se dos preparativos das viagens e pouco mais. Sempre desejou entrar num rabelo e seguir até ao Porto, mas o pai nunca lhe deu esse prazer. Não o queria no rio. Talvez por isso ele e os seus nove irmãos tenham esta extraordinária característica em comum: apesar de terem nascido e vivido junto ao Douro, nenhum deles sabe nadar. Custódio Sá é diferente. Bem puxado, teria histórias extraordinárias para contar. Este pescador de 69 anos, natural de Barqueiros, Mesão Frio, mantém com o Douro uma relação umbilical. Conhece-lhe as manhas e os fundos, adivinha-lhe a correnteza e os remoinhos. Tem oito filhos e todos sabem nadar. Como ele. Não tem outra paixão na vida se não percorrer as águas do Douro em busca de bogas, escalos e outros peixes de água doce. "Seria capaz de lá morrer, como o meu pai morreu, rentinho a ele [o rio]", confessa. A homenagem a Manoel de Oliveira continua no próximo dia 18, com nova projecção ao ar livre de "Douro, Faina Fluvial". Vai ser no cais do Pinhão, de novo com o rio como pano de fundo. "Será o grande teste desta iniciativa", acredita Gaspar Martins Pereira, o líder da equipa de projecto do Museu do Douro. O modelo mantém-se inalterado, mas, desta vez, o marinheiro convidado é o mestre Colina, o último grande arrais do Douro. O mesmo que conduziu o escritor Manuel Mendes na sua viagem pelo grande rio do Norte e que serviu de inspiração à obra "Roteiro Sentimental - Douro".

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