Gracinda Nave

Foi a mulher éterea, ausente, de "4.48 Psicose", é a mulher que trai e é traída em "Traições", de Harold Pinter, que Solveig Nordlund encena no CCB. Mas Gracinda Nave gosta de pensar em si própria como alguém que existe para além do teatro.

Três coisas fascinam Gracinda Nave: as casas, as estações de comboio e os carrinhos de choque das feiras populares. As casas, porque é curiosa e gosta de observar as pessoas. Os carrinhos de choque, pelo ambiente, porque vê neles poesia. As estações de comboio, pela imagem de pontos de chegada e de partida, a lembrarem "que os sítios não são permanentes" - mas provisórios, como a maioria dos lugares onde morou a actriz de 33 anos. Foi a mulher ausente, corpo manipulado em "4.48 Psicose", de Sarah Kane; é mulher a encantar, desencantar e manipular dois homens em "Traições", de Harold Pinter (em cena no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, integrado no Festival de Almada).entre oito cidades. Nasceu em Guimarães. Os primeiros anos de vida passou-os entre duas cidades moçambicanas. Veio para Portugal, Famalicão da Serra (a aldeia dos pais), fazer a primeira e segunda classe. Conta, com os olhos azuis claríssimos muito abertos, de espanto: "As minhas memórias da infância são muito sensoriais, soltas, um bocadinho como os sonhos. De Moçambique só me lembro de uns cortinados a esvoaçar, do sabor de chá com torradas e do geladinho ao domingo. Em Famalicão foi um choque. Vivia numa casa sem água nem luz, havia as candeias de azeite, os candeeiros de petróleo... e as matanças do porco." Seguiu-se Celourico da Beira, Covilhã. Coimbra, onde frequentou, durante três meses, a escola agrária; onde, no meio de uma conversa de café, surgiu a palavra representar associada ao curso do Teatro Experimental da Universidade de Coimbra (TEUC).Foi nessa altura que o encenador Rogério de Carvalho a escolheu para fazer de "criadita" em "Platonov", de Tchekov. "Tive essa experiência por acaso, talvez para preencher o ócio. O que me apaixonou logo foram os bastidores, os colegas, a construção do espectáculo, o ambiente, ver as cenas dos outros, o teatro amador, no sentido de quem ama, algo que no teatro profissional se começa a banalizar. É bonito construir em conjunto, a ideia do colectivo, que até pode parecer um bocado naïf..." E de repente, passaram-se dez anos, talvez menos ou mais, porque a sua memória, diz, falha. "Não sinto que Lisboa seja o meu sítio, por vezes sinto-me estrangeira. Mas isso faz parte da minha natureza, não posso fazer nada. Gosto de pensar que posso ir para outro sítio, construir tudo de novo, ser outra coisa..."teatro e vida. Não chegou a ficar muito tempo no TEUC, mas foi para o curso do IFICT, em Lisboa, onde teve como colegas Helena Laureano, Anabela Teixeira, António Simão, Carla Bolito. E Marco Delgado com quem forma um par em "Traições", de Harold Pinter, com quem formou um par em "Sonho de Outono", de Jon Fosse (ambos encenados por Solveig Nordlund) e em "O Amante", também de Pinter (encenação de Jorge Silva Melo). Em "Sonho de Outono", Gracinda era a Mulher que se reencontrava com um amor antigo (o Homem/ Marco Delgado) e também personificação da morte. Em "O Amante" era a mulher/amante do mesmo homem, e mantinha-se imperturbável no jogo erótico que os dois inventavam, enquanto ele, cínico, se debatia com uma crise de identidade, cansado do faz-de-conta. Agora em "Traições" os dois actores voltam à ambiguidade das relações amorosas, mas há uma terceira personagem à mistura, o marido dela, Robert (Rogério Samora). Aquilo que é, aparentemente, um triângulo amoroso multiplica-se; todos traem e são traídos, nunca saberemos se Emma tem/teve mais amantes - imperscutável personagem que Nave constrói, porque da sua vida amorosa sabemos a história mas pouco sobre o que há dentro dela. "Com o Marco tenho uma grande confiança e entendimento. Estudámos juntos [mais tarde reencontraram-se no curso do Instituto Franco-Português], percebemo-nos. Não conhecia o Rogério, acho que formamos um bom grupo. É importante para mim haver uma paixão entre todos. O teatro é um trabalho tão intenso que a vida pessoal quase não existe, tudo se mistura. Porque antes de nos entregarmos ao público, entregamo-nos aos nossos colegas: o nosso material somos nós, terei sempre que trabalhar com o meu riso, com as minhas mãos, como o meu corpo, com as minhas memórias. Damos muito quando trabalhamos em casulo, para fabricar aquela casinha."Não gosta de pensar no teatro como algo vital; mas não consegue deixar de falar do que faz como se o fosse. "Antes de ser actriz já era uma pessoa, acredito que alguns sintam que sem teatro não viviam. Acho que temos que ser mais coisas porque senão não há nada para dar. Quero pensar que sobrevivo para além disso... No fundo, isso tem a ver com o meu enorme medo da dependência".Gosta que gostem dela quando está no palco mas não gosta de ser dominada por isso. Tem uma relação de amor-ódio com o público: "Por um lado agrada-me a exposição, por outro quero que não olhem para mim... Ás vezes é uma coisa violenta mas não quer dizer que não exista prazer, até porque a partir do momento em que deixar de me dar prazer, faço outra coisa." Quando alguns espectadores abandonavam a sala em "Torquato Tasso" (encenação de Jorge Silva Melo onde a actriz representava o papel da maliciosa Leonor Sanvitale), ela ganhava mais entusiasmo, algo inexplicável que exterioriza assim: "Ai é? Então ainda vou fazer melhor". Fala dos ensaios como uma das coisas que a apaixonaram no teatro. É durante esse processo, que compara a um jogo de detective, que nasce a representação, como a folha/tela em branco do escritor ou do pintor, a preencher-se com o que se descobre. Para chegar à verdade; ou à honestidade. "O trabalho é uma coisa muito séria: há pessoas que pagaram bilhete para nos ver. É importante eu sentir que não estou a fazer 'bluff'. Talvez a verdade esteja mais ligada à idei de entrega." Escolhe "4.48 Psicose", de Sarah Kane, encenação do coreógrafo João Fiadeiro, como um dos trabalhos a que mais se entregou. "Foi especial. Era estranho: foi difícil mas ao mesmo tempo foi-me muito fácil fazê-lo, pela minha capacidade de ausência e de abstracção". Que canalizou para a figura éterea que pairava na sala dos Artistas Unidos (AU), aquela mulher de branco que abandonava o seu corpo até ser apenas voz num "não quero viver, não quero morrer", com uma contenção e fragilidade comoventes. "Foi um trabalho muito violento. Não era explosivo a nível de sentimentos, era tudo muito interior. O texto foi-se tornando violento aos poucos, quase sem me dar conta. Havia um desajuste entre o corpo e a mente e em alguns dias descomprimi completamente, como se fosse uma explosão natural."Lembra-se ainda, e sobretudo, das colaborações mais recentes com os AU, com quem trabalha desde 1999. "Torquato Tasso", de Goethe - um texto "grandioso" pelo qual se foi apaixonando, do qual tinha um medo terrível por achar que ainda não tinha maturidade para o representar - e "Na Selva das Cidades", de Brecht (encenado por Silva Melo), pelo espírito de colectivo. "Foi um espectáculo especial, pareciam quase dois: o nosso, em que comentávamos, vivíamos as cenas dos outros, e o outro, que devia ser muito bonito - digo isto porque não consigo pôr-me de fora nas peças em que entro".Compara o grupo de teatro a um casulo. Do qual vai agora sair para uma telenovela, "Amanhecer", "pelo desafio da rapidez", para saber "como se sobrevive a isso". É o impulso para o desconhecido, o "salto para as coisas", a vontade de experimentar (gostaria de participar num espectáculo de dança; gostaria de cantar). Como há uma década, quando partiu para Lisboa, deixando para trás um bar, em Coimbra, onde trabalhava de noite. Com as malas na mão, sem lugar onde as arrumar e a pensar que dali a um ano poderia estar a viver noutra cidade.

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