Os coleccionadores de ossos

O processo é macabro: o animal é esquartejado, cozido, descarnado. O cheiro, às vezes é pavoroso. Cientistas loucos? Não. Só cientistas. Andam a construir uma biblioteca de ossos.

O corço foi tirado da arca congeladora e ficou ali dentro de uma caixa de plástico azul forte. Dois dias mais tarde, o bicho está mais ou menos descongelado, como atesta o sangue que escorreu para o fundo da caixa. O português Carlos Pimenta e a espanhola Marta Moreno preparam-se, nesse momento, para uma operação algo insólita: esfolar e descarnar o corço, que tinha sido enviado pelo Parque Nacional da Peneda-Gerês, para pôr os ossos meio descarnados a cozer em água num panelão de alumínio. Não o mataram, nem nunca o fariam; morreu atropelado na Caniçada, no Minho. Também não é comida para nenhum ser vivo, nem é por prazer mórbido que vão despedaçá-lo. É em nome da ciência. Por ela fazem-se passar por talhantes, para coleccionar milhares de ossos, de centenas de espécies de animais, numa biblioteca de ossos aberta a todos os cientistas.Tanto Carlos Pimenta, de 49 anos, como Marta Moreno, de 36 anos, vestem batas brancas e protegem as mãos com luvas, brancas também. Avisam que até não cheira muito mal, ao contrário de outras vezes, quando os animais já estão em decomposição. A caixa azul com o corço está no chão da cozinha do Laboratório de Arqueozoologia do Centro de Investigação em Paleoecologia Humana e Arqueociências, que pertence ao Instituto Português de Arqueologia, em Lisboa. Pelo menos por ora, até ser concluída a extinção deste organismo e a sua fusão com o Instituto Português do Património Arquitectónico, segundo anunciou o Governo. A cozinha é como as outras, ou quase, por ter fogão, panelas de tamanhos vários (há uma de 80 litros, onde já foi cozido um golfinho, por exemplo), escorredores pendurados nas paredes e duas arcas congeladoras.Só que alguns pormenores desviam-se dos de uma cozinha convencional. As arcas congeladoras estão a abarrotar de carne de vários animais, em sacos de plástico, como nas nossas casas, mas nenhum dos cadáveres é comestível para os seres humanos. Parece-se mais com uma arca dos horrores. Texugos, cegonhas, águias, répteis, um gato morto numa estrada qualquer de Mafra, ou um cão da Serra da Estrela, que não viveu mais de seis meses. Mesmo os peixes, e já lá houve uma corvina de 18 quilos, só em teoria são comestíveis, pelo facto de a empresa fornecedora, a Docapesca, os ter recusado para consumo humano por não estarem em boas condições. "Temos as duas arcas completamente cheias", mostra o arqueólogo Carlos Pimenta, que também recebeu formação em biologia.Em vez de livros de cozinha, nas prateleiras alinham-se livros e guias sobre animais e frasquinhos cujo conteúdo não é, certamente, malaguetas nem azeitonas. Mas, antes, cobras enroladas sobre si próprias, à espera, mergulhadas em álcool, do mesmo destino do corço, e embriões de ginetas e de gatos com aspecto algo esbranquiçado. Pelas bancadas também não se dispõem batatas, cenouras nem outros ingredientes culinários, mas ossos, a secar, de uma tartaruga-de-couro com 400 quilos e uns 100 anos que deu à costa, já morta, no Cabo Carvoeiro, há uns meses. Por aqui se vê qual será o futuro do corço... Avisados pelos responsáveis da Reserva Natural da Berlenga, foram lá buscá-la numa carrinha de caixa aberta, até porque não cabia no carro, não sem antes a terem içado com um guindaste da Câmara Municipal de Peniche.No centro da cozinha, Carlos Pimenta e Marta Moreno, arqueozoóloga, improvisaram uma mesa, e é para lá que acarretam o corço. "É um animal velho, entre os sete e os 11 anos", esclarece Carlos Pimenta. De roda do bicho, cujo pêlo é acinzentado, esticam uma fita métrica ao longo dos seus 106 centímetros de comprimento, um dado logo introduzido numa ficha, a número 02/0094, onde também constam informações como a proveniência e a data da morte. Não o pesam, por não valer a pena, porque já chegou sem as entranhas, depois de esventrado numa autópsia realizada no parque. "Agora, vamos começar o trabalho de carniceiro. Já dissemos que um dia abrimos um talho", brinca Carlos Pimenta. Não vá o mau cheiro intensificar-se, a porta da rua mantém-se escancarada.Cada um deles atira-se a uma das patas dianteiras e, com um bisturi, uma faca e tesoura, vão removendo o mais que podem de carne. Marta Moreno faz um montinho em cima de um jornal velho. "Está congelado", queixa-se, ao mesmo tempo que prepara uma das patas na bancada. "Aqui também. Está completamente pedra", responde-lhe Carlos Pimenta, em volta da mesa improvisada.Os aspectos insólitos não findam aqui. Carlos Pimenta traz uma caixa de sapatos. Amontoam-se lá dentro meias-de-vidro. Absolutamente estranha à função original, a sua finalidade é essencial para garantir o rigor informativo sobre todos os ossos da osteoteca, a colecção de referência de ossos do IPA, onde figuram já 1199 animais (o corço será o 1200). Tanto assim é que os elementos do Laboratório de Arqueozoologia - onde se inclui ainda o zoólogo britânico Simon Davis, de 52 anos, e a arqueóloga portuguesa Sónia Gabriel, 26 anos - andam sempre a pedir meias velhas. "Não vamos comprar meias novas para este fim", diz Carlos Pimenta. O fim de que fala o investigador logo é desvendado quando Marta Moreno coloca a omoplata esquerda - e uma chapinha com o número do animal e a identificação se a pata é dianteira ou traseira, do lado esquerdo ou direito, por exemplo - dentro de uma das meias, ata-a e zás, vai tudo para o panelão. (A água a ferver não destrói as meias.) O resto da pata dianteira esquerda segue o mesmo caminho, mais a chapa, que acompanhará sempre os ossos.Com um pequeno serrote, Carlos Pimenta põe-se a decapitar o corço. Só as patas, a cabeça com algumas vértebras e os ossos a bacia vão para o panelão. O bicho fica a ferver algumas horas, para melhor ser descarnado. O resto não é aproveitado, vai para o lixo, e ele explica porquê: "Já temos dois ou três esqueletos completos de corço." Por isso, já só escolhem os ossos considerados mais importantes para a identificação dos fragmentos ósseos de animais encontrados nas escavações arqueológicas. É, de resto, para isso que serve a osteoteca.E o corço continua a ferver.Esta mistura bizarra de acontecimentos faz pensar em laboratórios macabros e cientistas loucos. Ou filmes de terror. Isso é, aliás, algo que Marta Moreno e Carlos Pimenta até já sentiram quando, certa vez, num pequeno laboratório do Parque Nacional da Peneda-Gerês, pouco iluminado, e cansados de uma viagem de cinco horas desde Lisboa, tiravam a carne a um javali debaixo de uma violenta trovoada. A luz dos relâmpagos ajudou a compor o cenário. "Lembro-me de eu e a Marta estarmos a abrir um javali com a trovoada... Tínhamos as facas, as batas e o javali pingava sangue", conta ele. "Se alguém ali chegasse, fugia a sete pés", acrescenta ela.São então daqueles excêntricos que guardam coisas estranhas no frigorífico, como dão a conhecer certos documentários? Nada disso: o corço não é para o almoço, tal como o javali não era para um ritual satânico. "Este trabalho de preparação dos animais é desagradável, é um nojo. Mas tem um fim muito nobre, um fim científico", sublinha Carlos Pimenta.Em nome desse fim, ao cabo de umas duas horas a ferver, o corço sai do panelão, cada meia-de-vidro é aberta e Carlos Pimenta esfarrapa mais um pouco da carne agora cozida. O resto do trabalho é entregue a uma enzima, a neutrase, por sinal usada na indústria alimentar, que irá destruir todos os tecidos moles. Para isso, devolvem-se os ossos às meias, mais as chapinhas, e tudo vai para um balde com água e uma porção de neutrase, que é um líquido espesso castanho. "A enzima acelera a decomposição dos tecidos. Fica uma sopa muito malcheirosa e amarelada", explica. As meias, essas, continuam a resistir. O balde ficará numa incubadora, onde a temperatura se mantém a 45 graus, até à manhã seguinte. Para não pôr as mãos nessa mistela, será com pinças que Carlos Pimenta e Sónia Gabriel, dessa vez será ela a ajudá-lo, retirarão de lá as meias, cujo conteúdo vão despejar num dos tais escorredores pendurados na parede, para que nenhum osso se perca pelo lava-loiças abaixo. Depois de passados por água corrente, os ossos ficarão a secar em tabuleiros, até seguirem para caixas de madeira devidamente catalogadas. Ficarão clarinhos, os ossos. Do corço inicial, nem sombras.Fotografias: José Paulo Ruas/IPA

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