Ela sonha com crimes

Hoje é lançado nos Estados Unidos o último filme de Steven Spielberg. Onde Samantha Morton sonha com crimes que vão ser cometidos e Tom Cruise é um detective em fuga, no ano de 2054. É também com os olhos de Samantha que nestas páginas antecipamos "Minority Report".

Mal começaram a ser mostradas, em sessões de "teste", as primeiras cenas do thriller de ficção científica "Minority Report", e as pessoas puseram-se a murmurar. Não só por causa do actor principal, Tom Cruise, ou do realizador Steven Spielberg que rodou aquele que alguns já consideram o seu melhor filme em anos; o murmúrio também se devia à actriz britânica Samantha Morton (nomeada para um Óscar por "Sweet and Lowdown", de Woody Allen), que no filme é muito mais do que o interesse amoroso de Cruise. "Minority Report", que estreia hoje nos Estados Unidos (em Portugal só lá mais para o Outono), vai certamente catapultá-la para a estratosfera.Com apenas 25 anos, Samantha tem tempo à sua frente para ser estrela. Na "première" de "Minority Report" tinha um ar incrivelmente glamoroso e inteligente, com o corte de cabelo à rapazinho, nariz arrebitado e pele clara. Mas é alguém que evita os lugares deslumbrantes frequentados pelos famosos. Apesar desse distanciamento em relação a Hollywood, quando chegou o telefonema do mais famoso realizador da América Samantha Morton pôs-se aos pulos como uma liceal."Encontrava-me na altura em Israel, a filmar 'Eden' para Amos Gitai, e estava a passar um tempo estupendo em Haifa, quando um amigo me avisou que Steven Spielberg ia telefonar. E eu respondi 'sim, está bem!'", recorda Morton. "Mas depois passei por aquilo que passei quando fui convidada pela rainha de Inglaterra para ir ao Palácio de Buckingham" (que ela pronuncia "Bookingham"). "Ou seja, nessa altura meti-me num táxi e disse 'Bookingham Palace, por favor!' e o taxista não acreditou. Até me pediu para lhe mostrar o convite que tinha na bolsa - fui lá para receber um prémio relacionado com um empreendimento qualquer para jovens'", explica. "Na altura, ninguém acreditou quando falei disso e agora com o convite de Steven Spielberg passou-se a mesma coisa. Tremia, literalmente, após ter recebido a chamada. No entanto, tentei ser tão reservada quanto possível sobre o projecto, também para me proteger, porque não queria fazer uma coisa qualquer só por ser um filme de Steven Spielberg. Queria trabalhar com ele, mas tinha que ter a certeza que ia ser bom para mim". Não tinha motivos para se preocupar. "Ia trabalhar com duas das pessoas mais importantes, da lista-A, de Hollywood, Steven e Tom Cruise, e essas são as melhores condições que podemos ter!", como acabou por concluir.quem matará? Antecipemos então para "Minority Report" através dos olhos de Samantha Morton. No filme ela é Agatha e é aquela que sabe tudo. Ou melhor: que antecipa tudo. Juntamente com um grupo de dotados, Agatha vive suspensa em líquidos e consegue "ver" os crimes antes de eles serem cometidos pelos criminosos. Agatha sonha com crimes. É essa a forma, em 2054, ou seja, num futuro não muito longínquo, em Washington D.C., de as actividades dos habitantes do planeta Terra serem controladas.Filme repleto de suspense, hitchockiano (Spielberg assumiu que queria fazer um "thriller" neo-noir como os filmes dos anos 40), "Minority Report" adapta uma novela do escritor de culto de ficção científica Philip K. Dick, e passa-se num tempo onde as pessoas podem ser acusadas de assassínio antes de terem cometido o crime. Agatha é o oráculo mais poderoso de um trio de "Precogs", essas tais pessoas que têm o conhecimento prévio sobre quem vai cometer o crime. Com o cabelo bastante rapado e colocada num tanque de água onde ela e os seus parceiros estão ligados uns aos outros e de onde irrompem as visões - o espaço é chamado "o Templo" -, Agatha/Morton é uma oradora intensa, fascinante quando está a dar pistas para ajudar o detective interpretado por Tom Cruise, John Anderton, a resolver vários mistérios, entre os quais a morte do seu único filho. O maior mistério, no entanto (e é essa a narrativa que faz mover "Minority Report"), é o facto de Anderton, que chefia a equipa de "Precogs", que concebeu esse sistema que potencialmente poderá salvar a vida de milhares de pessoas, ser ele próprio acusado de assassínio. Ele vai cometer um crime num espaço de 36 horas. Ou seja, em vez de "quem matou?", é um filme sobre "quem matará?".Agatha "é essencialmente uma criança, mas a sua sabedoria está para além da idade. Ela vê os sentimentos e as emoções das pessoas e sente a sua dor e sofrimento. É uma realidade pesada para ela", diz a actriz, explicando que na biografia da sua personagem está uma criança que foi retirada aos pais (instáveis, toxicodependentes) e transformada pelo Estado numa máquina de antecipar acontecimentos.Samantha foi chamada para este papel emocionalmente exigente (e que que a obrigou a passar grande parte da rodagem dentro de água) após ter feito "Morvern Callar", um invulgar e poético filme (baseado num romance de Alan Warner) sobre uma mulher em luto pela morte do namorado. "Fui logo a seguir até Los Angeles onde me raparam o cabelo e as sobrancelhas, e filmei no dia seguinte", lembra-se. "Mas tinha falado com o Steven ao telefone na noite anterior. Falámos durante muito, muito, muito, muito tempo. Foi dessa maneira que as coisas funcionaram. Após o telefonema eu estava morta por fazer o filme. A parte mais fácil foi conhecer Steven". E não estava assustada por ser a parceira de Tom Cruise?. "Não se pode pensar nesses termos porque assim não conseguimos entrar no esquema e fazer o nosso trabalho como deve ser. Actualmente sinto-me mais nervosa quando estou na presença de músicos. Se Patti Smith entrasse agora aqui, ficava intimidada e o mesmo aconteceria com a Chrissie Hynde [The Pretenders]". Essas são as mulheres que Morton considera espertas, robustas e inflexíveis. Trabalhando desde os 12 anos, Samantha Morton fez alguns dos seus mais importantes trabalhos com realizadoras, frequentemente no papel de traumatizadas. Chamou inicialmente a atenção no filme de Carine Adler "Under the Skin", onde contracenou com Billy Crudup, e em "Jesus' Son", da neozelandesa Alison McLean. E, com certeza, houve Woody Allen, que tem multidões de actrizes a quererem trabalhar com ele. Mas Samantha admite que a sua nomeação para o Óscar de melhor secundária por "Sweet and Lowdown" não aumentou por aí além as ofertas de trabalho."Tenho o mesmo agente na América desde os 16 anos. Eles viram 'Under the Skin', gritaram 'Wow!' e quiseram representar-me. Trabalharam imenso na minha promoção e enviaram ao Steven Spielberg uma cópia de 'Under the Skin'. As pessoas na América iriam ver um filme de Woody Allen fosse ele nomeado para um Óscar ou não. Mas na América só importa se ganharmos, penso eu."A sua vida vai mudar com "Minority Report?" "Espero que sim. Quero dizer: a experiência faz com que mudemos, se estivermos abertos a isso. Mas gosto de manter a minha vida equilibrada e se puder hei-de trabalhar mais vezes em Los Angeles. Para mim isso tem a ver com o querer prosseguir uma carreira internacional, tem a ver com o trabalho e não com o querer atingir determinado estatuto. Sinto-me perfeitamente feliz com o meu ego, não preciso de ser adorada pelas multidões, não preciso que me amem. Não é que pense que as actrizes que estão a ter sucesso em Hollywood queiram ser idolatradas; mas penso que Hollywood tem uma maneira estranha de escolher quem quer promover e quem não quer. O público não tem escolha nessa matéria."Certamente se o Óscar ou os prémios da indústria britânica de cinema tocarem à porta como parece que vai acontecer Morton lá estará. "Acho que se puder ajudar a que o filme seja promovido, fantástico. Mas então vou ter que encontrar algo para vestir. Vai ser um pesadelo."

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